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Recentemente o Brasil viveu mais uma da série de polêmicas desnecessárias, protagonizadas entre o presidente Jair Bolsonaro e a classe falante brasileira, que o detesta. Desta vez, a polêmica foi com relação à ordem dada pelo presidente Jair Bolsonaro à “comemoração” ou “rememoração” do 31 de março de 1964. Na minha opinião, sem entrar em maiores delongas, houve sim um golpe de Estado clássico em 1964. Mas isto, na realidade, é só cortina de fumaça, pois a discussão na realidade é outra. Pois, se o presidente e as Forças Armadas quiserem “rememorar” a data (como, aliás, sempre fizeram até o governo Dilma) não há necessidade da classe falante (jornalistas, intelectuais, artistas, professores universitários etc.) criar toda esta celeuma com relação a esse episódio, como se graças a ele nós estivéssemos às vésperas do Apocalipse, ao invés de se preocuparem de verdade com problemas reais, como o desemprego, o estado pré-falimentar da nossa Previdência Social e a retomada do crescimento econômico.

Vamos ao que interessa de fato e ao que realmente está em jogo na criação de mais esta polêmica. O que está em curso é uma verdadeira disputa pelo “controle do discurso”, pois como bem diz o filósofo Michel Foucault em Microfísica do poder, “discurso” e “poder” são palavras intercambiantes: quem controla o discurso controla o poder. Não é à toa que a disputa se dá nas trincheiras da tradicional grande mídia e da novidade incômoda das redes sociais. O presidente Jair Bolsonaro detém de fato o poder político, porém o controle do discurso na sociedade está em disputa: durante décadas estava com a chamada classe falante (o que popularmente se chama de “opinião pública”). Mas hoje, a classe falante vê ameaçada sua hegemonia por milhões de brasileiros que não concordam com suas pautas e agora têm acesso ao grande público via redes sociais. A raiz de todas as polêmicas envolvendo o atual presidente é que a classe falante deste país, de matriz iluminista, laicista e social-democrata simplesmente não aceita o fato do presidente eleito não ter vergonha ou escrúpulos em ser aberta e assumidamente de direita.

Numa democracia plena e avançada, a tendência é justamente a alternância de poder entre esquerda e a direita

Um governo assumidamente de direita no Brasil assusta a maioria desta classe falante, como se isto fosse a exceção e não a normalidade numa democracia. Esta percepção está errada: numa democracia plena e avançada, a tendência é justamente a alternância de poder entre esquerda e a direita, e a construção paulatina de consensos cada vez mais abrangentes em torno de pontos que são aceitos por todos e que permitem a estabilidade à nação. Isto requer tempo, e a nossa democracia é jovem: tem apenas 34 anos. Muitos se assustam porque têm pressa e não se dão conta que, na democracia, o conflito é a norma e não a exceção, e que a política é a gestão dos conflitos, e não a ausência deles.

Com relação à construção de consensos entre direita e esquerda nas democracias avançadas, um exemplo claro tivemos nas posturas de Estados Unidos e Canadá com relação ao reconhecimento de Juán Guaidó como presidente encarregado da Venezuela: Donald Trump e Justin Trudeau, respectivamente direita e esquerda, reconheceram a Venezuela atual como uma ditadura. Reconhecer isso atualmente é impensável na maior parte esquerda brasileira.

Como chegamos a este estado de coisas? A partir do final dos anos 1970, com a derrota total dos últimos guerrilheiros em 1975 na guerrilha do Araguaia, a esquerda brasileira deslocou o seu campo de combate e resistência da luta armada para o combate no campo da cultura (uma estratégia de cunho evidentemente gramsciano), aproveitando-se da existência de uma ditadura de direita para deslegitimar um campo político, como se não fosse possível a existência de uma direita “democrática”. Além disso, usou o que o general Golbery do Couto e Silva chamou de “teoria da panela de pressão”: se a esquerda manifesta culturalmente a sua insatisfação com o regime, isso funcionará como “válvula de escape” e ela desistirá de tentar derrubá-lo via luta armada. A esquerda passou então a usar os espaços disponíveis nas universidades, na têvê, na imprensa, nos palcos, no cinema e nas apresentações e manifestações artísticas em geral, conseguindo vender ao imaginário brasileiro a ideia da direita como “a encarnação do mal, do atraso, do retrógrado e do que há de pior”, e a ideia da esquerda como a detentora do “monopólio do bem”. A lógica era simples: “se você não é de esquerda, logo é a favor da ditadura, da exploração, da miséria e, portanto, você só pode ser do mal”. Por diversas razões (que não é possível analisar neste espaço) este pensamento prevaleceu: durante cerca de 35 anos, o pensamento que se identifica como direita (seja o liberalismo econômico, seja o conservadorismo) se tornaram marginais na classe falante e na opinião pública, chegando até mesmo a ser subversivo. Todo mundo se dizia de esquerda ou no máximo de centro. Quem defendia abertamente o capitalismo, o liberalismo econômico, ou a religião e a moral cristãs, quem criticava o socialismo ou a revolução era visto como “do mal”, “retrógrado” ou “atrasado”. Com relação aos cristãos, no máximo eram aceitas declarações como estas: “Eu sou cristão, mas eu não concordo com tudo o que a Igreja ou a Bíblia dizem”.

Flávio Gordon: 1964: verdades inconvenientes (publicado em 3 de abril de 2019)

Leia também: Minorias, sempre as minorias (artigo de Irineu Berestinas, publicado em 19 de janeiro de 2019)

Tal situação perdurou por três décadas e meia e só começou a ser revertida no início da atual década, após a ascensão da esquerda ao poder e ao seu desgaste natural, somado ao fracasso do governo Dilma, à gigantesca crise econômica (a Grande Recessão Brasileira, de 2014 a 2017) e à emergência da Operação Lava Jato. Estamos assistindo a um ressurgimento dos pensamentos liberal e conservador, que não têm mais vergonha de dizer quem são e o que pensam, nem têm receio de serem vistos como antidemocráticos (isto pode ser medido pela quantidade de livros, editoras, blogs, canais no YouTube e figuras públicas, como Olavo de Carvalho, Joice Hasselmann, Felipe Moura Brasil, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, João Doria e outros, que são abertamente de direita, em seus mais variados espectros). Este ressurgimento da direita no Brasil, aliado a uma série de outras variáveis, permitiu a ascensão ao poder, de forma democrática, do presidente Jair Bolsonaro, que representa a resultante destes três fenômenos: representa o liberalismo econômico (na figura de Paulo Guedes), o combate à corrupção como método de governo (na figura de Sérgio Moro) e o pensamento conservador, especialmente o político e o cristão (nas figuras de Ernesto Araújo e Damares Alves).

Um detalhe frequentemente esquecido nesta guerra de narrativas é este: se a esquerda realmente tivesse o compromisso com a democracia que afirma ter, não comemoraria em plena Câmara dos Deputados os 100 anos da Revolução Russa (que levou a uma ditadura que durou sete décadas e levou à morte 30 milhões de pessoas). A grande maioria das vítimas da ditadura militar eram guerrilheiros que estavam em guerra de guerrilha contra o Exército Brasileiro, seguindo o método de Che Guevara e Régis Debret. Isso nunca teve a menor chance de dar certo no Brasil, conforme se lê no livro do jornalista Luís Mir, A Revolução Impossível, dada a gigantesca diferença entre as realidades geográfica e cultural de Cuba e do Brasil. Além disso, outra “lenda urbana” a ser desmentida, conforme se lê no livro Imagens da Revolução, de Daniel Aarão Reis, é a luta dos guerrilheiros pela democracia. Neste livro estão todos os manifestos das organizações que participaram da luta armada no regime militar. Nestes manifestos se vê claramente que os guerrilheiros não lutavam pela democracia, mas sim pela ditadura do proletariado, ou seja, por uma outra ditadura, só que comunista.

Carlos Ramalhete: 31 de março de 1964 (publicado em 28 de março de 2019)

Leia também: Um passeio pela modernidade: consciência e alienação (artigo de Davi Melo, publicado em 30 de dezembro de 2018)

Outro detalhe propositalmente esquecido é a diferença brutal das proporções. Enquanto a ditadura militar no Brasil matou 434 pessoas, as ditaduras comunistas ao redor do mundo mataram 110 milhões de pessoas em cerca de 100 anos, segundo o professor Stephanie de Courtois, da Universidade Paris VII, atualmente um dos maiores especialistas em comunismo do mundo. Há ainda autores, como o filósofo Olavo de Carvalho, que estimam o número total de mortos pelos regimes comunistas e pelo movimento comunista internacional em até 200 milhões de vítimas. No entanto, apesar de ter tantos mortos nas costas, a esquerda teve a ousadia de comemorar na Câmara dos Deputados os 100 anos da Revolução Russa, sendo que a União Soviética matou 30 milhões de pessoas, sendo pelo menos 10 milhões mortas de fome, como em Holodomor (uma fome provocada) na Ucrânia nos anos 1930. Claramente se vê que a histeria da esquerda brasileira ao chamar a ditadura militar de assassina chega a ser patética tendo em vista as diversas ditaduras assassinas que ela apoiou e apoia até hoje, como Cuba, Venezuela, Líbia, Guiné Equatorial, Zimbábue e Angola. A esquerda brasileira tem de tirar a trave do próprio olho para poder tirar o cisco que julga estar no olho da nova direita.

Dimitri Martins, analista de Políticas Sociais no Ministério da Economia, é mestre em Administração pela UFBA e especialista em Gestão Pública pela Enap.
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