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| Foto: Fred Dufour/AFP

Em Mianmar, como em todo lugar, os fatos têm poder. E foram os acontecimentos horripilantes revelados por dois de nossos repórteres, Wa Lone e Kyaw Soe Oo, que fizeram com que fossem acusados, detidos, presos, julgados e, este mês, recebessem uma sentença draconiana de sete anos atrás das grades. Na semana passada, a líder civil daquele país, Daw Aung San Suu Kyi, ignorou, resoluta, as circunstâncias e defendeu com vigor a punição injusta. Com a Assembleia Geral da ONU se aproximando, é hora de deixar bem claro o ocorrido para garantir a liberdade de nossos repórteres.

Segue aqui então os detalhes do que houve.

Os rohingya são uma minoria muçulmana que vivem no estado de Rakhine, na porção oeste de Mianmar, país de maioria budista. No ano passado, uma operação militar repressora forçou 700 mil deles a fugir para Bangladesh. A ONU acusou o governo birmanês de promover uma limpeza étnica; as autoridades afirmam que suas operações foram resposta aos ataques dos insurgentes às forças de segurança.

Em dezembro passado, Wa Lone e Kyaw Soe Oo estavam investigando a participação do exército e da polícia nas mortes de dez homens e meninos da etnia minoritária em um vilarejo de Rakhine, baseados em fotos que receberam dos anciãos, registro do assassínio em massa. Uma mostrava as vítimas ajoelhadas em um campo; em outra, elas apareciam em uma vala comum, esfaqueadas ou baleadas. Dezenas de pessoas que estavam nas proximidades na ocasião descreveram não só a carnificina em questão, como também os saques e incêndios criminosos promovidos pelas forças de segurança. Jornalistas experimentados, Wa Lone e Kyaw Soe Oo entrevistaram todos os que puderam, não só os muçulmanos em fuga, mas também os budistas, a polícia e os militares.

E descobriram evidências indiscutíveis. Essa é a grande virtude do jornalismo pé no chão praticado por profissionais que falam a língua local, seguem regras rígidas de independência e objetividade e conhecem o caminho das pedras. Esse tipo de reportagem, na qual se baseia o trabalho da Reuters nos 166 países em que opera, tem a capacidade de fornecer provas dos fatos de uma maneira que as análises, comentários e relatos de segunda mão não conseguem. De fato, as autoridades birmanesas foram forçadas a admitir que o massacre ocorrera, mesmo tendo processado nossos jornalistas por revelarem o fato.

As autoridades birmanesas foram forçadas a admitir que o massacre ocorrera, mesmo tendo processado nossos jornalistas por revelarem o fato

A prisão dos dois foi uma armação óbvia, cujo objetivo era revelar as fontes da Reuters e nos impedir de publicar o relato da chacina. O nível de intimidação foi grande: os repórteres, encapuzados, foram levados a um centro secreto de interrogatório, onde permaneceram algemados, tendo sido continuamente interrogados, ameaçados e impedidos de dormir. Kyaw Soe Oo foi obrigado a permanecer ajoelhado durante horas quando descobriram as fotos dos assassinatos em seu celular. Só depois de duas semanas é que suas famílias, advogados e nós, da Reuters soubemos onde os dois estavam. Após fazermos contato e completarmos a matéria, publicamos a história explosiva, com o aval irrestrito de seus autores.

Durante oito meses, com nossos repórteres ainda presos, um tribunal em Yangon se dedicou ao que passou por um processo judicial. O policial que deu voz de prisão assumiu, em depoimento, que queimara seus registros; uma testemunha leu as anotações que tinha na mão para se lembrar, segundo sua própria admissão, de como depor da maneira certa.

Aí então veio o momento inesperado e heroico, no qual um policial declarou que um general tinha ordenado a um oficial menor que plantasse papéis nos pertences de Wa Lone e o prendesse. Apesar desse depoimento, porém, o julgamento prosseguiu, ainda que o oficial tenha sido detido e condenado a um ano de cadeia.

Observadores internacionais enxergaram a farsa exatamente pelo que era, ou seja, uma tentativa de punir nossos jornalistas e dissuadir outros repórteres de cobrirem os eventos em Rakhine. Diplomatas de vários países, incluindo EUA, Reino Unido, Canadá, Noruega e Austrália, protestaram contra a ausência de um processo justo, do Estado de direito e da repressão da imprensa livre em um país a que foi prometida democracia.

Leia também: Sobre a condição humana – ou a derrocada dos ídolos (artigo de Luís Alexandre Carta Winter, publicado em 15 de novembro de 2017)

Leia também: Liberdade de opinião é poder ferir a suscetibilidade alheia (Bernardo Strobel Guimarães e Camilla Barriunuevo, publicado em 25 de fevereiro de 2018)

Mas, até agora, a revolta global não mudou absolutamente nada. Aung San Suu Kyi alegou que o julgamento não teve nada a ver com a liberdade de imprensa e que as condenações foram legítimas, de acordo com o Ato dos Segredos Oficiais, uma lei da era colonial que proíbe a coleta de documentos secretos para ajudar o inimigo. Acontece que o vasto volume de provas aponta para a polícia tendo plantado os documentos em questão nos nossos jornalistas, cuja única intenção era fazer uma cobertura verdadeira.

E agora?

Com o mundo se preparando para a abertura, esta semana, da Assembleia Geral das Nações Unidas, é hora de afirmar não só os fatos desse caso, mas o valor dos mesmos – de declarar nossa certeza de que certas coisas são verdadeiras, outras não. Devemos rejeitar a ideia cínica e perigosa de que todo mundo tem direito a seus próprios acontecimentos; vimos aonde isso nos levou em Mianmar e outros lugares. E também precisamos reafirmar o papel essencial de uma imprensa livre na revelação dos fatos.

Jornalistas são seres humanos e, portanto, imperfeitos. O jornalismo, porém, quando feito de forma correta, tem um objetivo público nobre: gera transparência nos mercados, cobra atitudes e responsabilidade de governos e empresas, oferece ferramentas para que o público, bem informado, tome decisões, revela comportamentos condenáveis, inspira reformas e conta histórias incríveis e verdadeiras que emocionam e inspiram. A ONU deve insistir no fato de que a supressão de uma imprensa livre contradiz a própria natureza da democracia e não pode ser tolerada. Outras instituições multinacionais, ao lado dos governos, devem deixar bem claro aos líderes de Mianmar que Wa Lone e Kyaw Soe Oo têm de ser soltos.

Stephen J. Adler é presidente e editor-chefe da Reuters.
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