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Colégio Militar de Curitiba.
Colégio Militar de Curitiba.| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Em janeiro deste ano, por meio de um decreto, o atual presidente da República criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares. Com base neste documento, foi divulgado, em julho, nos meios de comunicação, que o Ministério da Educação almeja implantar 108 escolas cívico-militares nos próximos quatro anos. Em setembro, outro decreto foi promulgado, instituindo o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, bem como apareceu a notícia de que aquele número havia dobrado: atualmente mais de 200 escolas, resultantes de parcerias com o setor público, já se encontram em funcionamento. São escolas comuns que se transformaram em instituições educativas cívico-militares. Assim que o primeiro decreto foi publicado, iniciou-se uma polêmica envolvendo grupos favoráveis e contrários às mesmas, e que vem se intensificando na medida em que o tempo passa.

No âmbito desta polêmica, não tem sido recorrente a indagação sobre os plausíveis motivos que têm levado os militares a se envolverem com o ensino público. Tal indagação é muito importante, uma vez que se trata da ingerência dos mesmos em um setor que não é da sua alçada, o que gera implicações e consequências. Quais seriam, então, os presumíveis motivos? Uma compaixão para com os segmentos desfavorecidos da sociedade? O costume de realizar ações cívico-sociais? O hábito adquirido em consequência das diversas ingerências no ensino público? A tentativa de barrar um suposto avanço da guerra cultural? É possível aceitar que estes e outros prováveis motivos existam e possam ter alguma influência, mas não são essenciais e nem decisivos. O fator substancial que os aciona só pode ser o imaginário contido em suas mentes, cujo conteúdo agrega o sentimento de superioridade moral e intelectual reproduzido incessantemente desde há mais de um século até os dias de hoje em decorrência do processo de educação e de socialização a que esses militares são submetidos, o qual pode ser ponderado com base no argumento de que os militares são preparados para serem guerreiros. Entretanto, caso não seja este imaginário o motivo principal, qual deve ser, então?

Outro aspecto destacado da polêmica em questão é se elas representam uma militarização do ensino público. A resposta oficial que se encontra no portal do Ministério da Educação é negativa a esse respeito, ao afirmar que essas escolas visam “contribuir com a qualidade do ensino na educação básica, além de propiciar aos alunos, professores e funcionários um lugar mais seguro, passível de uma atuação focada na melhoria do ambiente e da convivência escolar”. Apesar de ser uma meta relevante e almejável, percebe-se claramente que se trata de uma resposta evasiva e desviante que não responde à questão colocada. Se militares se encontram entre os responsáveis pelo projeto destas escolas, se o Ministério da Defesa é o parceiro gêmeo do Ministério da Educação para viabilizá-las, se é a presença deles nas escolas civis que as movimenta, e se são concepções militares que as norteiam, parece impossível asseverar que não se trata de uma militarização da educação pública. Se não é militarização, então o que é? Por que o Ministério da Educação apresenta uma resposta que não tem nada a ver com a pergunta?

As escolas cívico-militares são obrigadas a obedecer à Constituição Federal e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

Embora o exame dessas questões seja relevante, existem outras de igual importância e que não foram colocadas ainda, relacionadas ao funcionamento real dessas escolas. Tal funcionamento está sendo concretizado em função de um modelo educacional pré-estabelecido, e é por causa dele que tais questões emergem. A esse respeito, os dois decretos mencionados apontam que as escolas cívico-militares devem ter por referência os “padrões de ensino e modelos pedagógicos empregados nos Colégios Militares do Exército, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros”. Parece indiscutível que uma análise desses modelos viabiliza o posicionamento dessas questões.

Por sua vez, esta análise exige que uma ideia de modelo seja apresentada. Assim sendo, e com base na concepção estruturalista, pode ser dito que ele se mostra como uma configuração composta de vários elementos em interação, cumpridores de funções específicas. Parodiando Lévi-Strauss, pode ser dito que o modelo não é a realidade objetiva e sim uma representação dela. Com efeito, qualquer aspecto desta realidade, ao contrário do modelo, é multideterminado e, como tal, é dinâmico, pois encontra-se sujeito a constantes alterações que podem  atingir o nível da radicalidade, gerando um salto qualitativo. Em decorrência, o modelo que se mostra estável tem de ser reconfigurado.

Norteado por este entendimento, é possível, então, expor o modelo educacional das escolas cívico-militares. Empregado nos citados colégios, ele é composto por quatro elementos. Dois deles – a uniformização e a diferenciação – constituem o núcleo básico. A uniformização visa incutir uma identidade militar comum a todos os alunos, e que agrega os modos de pensar, sentir e agir. A diferenciação tem por escopo valorizar a manifestação da originalidade pessoal, das qualidades singulares que cada um tem. Para alcançar a uniformização, exige-se dos discentes o cuidado com a aparência pessoal, o uso de uniformes, o gesto da continência, a entoação de canções e hinos específicos, a obediência às ordens, o cumprimento dos regulamentos, a ocupação de lugares pré-determinados, a prática da ordem unida, o deslocamento grupal em marcha etc. Esta uniformização atende à crível finalidade de uma instituição bélica, de se constituir como um grupo distinto e homogêneo dotado das características específicas requeridas.

A diferenciação é granjeada pelo estímulo ao estudo e à obtenção de notas altas, pelo incentivo às condutas de inciativa e protagonismo e pelo encorajamento à exibição de comportamentos destacados. Esta diferenciação atende à finalidade dos estabelecimentos castrenses de manter a escala hierárquica e utilizar o mérito como critério determinante para o desempenho de certas funções – no caso dos colégios, por exemplo, a instauração do escalonamento do corpo discente e a determinação do líder de turma e do porta-bandeira. Dentre as questões que podem ser aqui colocadas, cabe apontar quatro: este modelo é adequado para a formação dos alunos do ensino público? Os dois aspectos do modelo estão sendo nelas postos em prática? Nas novas escolas eles  serão aplicados? Quais as justificativas caso apenas um deles esteja sendo ou venha a ser concretizado ou enfatizado?

O terceiro elemento do modelo é a pedagogia tecnicista, que fornece os recursos necessários ao processo formativo tanto no aspecto da uniformização quanto no aspecto da diferenciação. Como muitos sabem, a mesma se baseia nos princípios da racionalidade, da eficiência e da produtividade, e requer a instauração de um roteiro sequencial assim estabelecido: definição das competências, estabelecimento de objetivos realizáveis, seleção das estratégias de ensino-aprendizagem e escolha dos critérios de avaliação. Ela tem por finalidade transformar o ensino em algo concreto e operacional, pois sua meta mais importante é a de garantir que o aluno assimile  conhecimentos, desenvolva habilidades e internalize atitudes. A materialização da pedagogia tecnicista por meio deste roteiro exige a presença de um aparato considerável que existe nos colégios militares, tais como um setor de planejamento, um setor de avaliação, um setor encarregado dos recursos auxiliares, uma equipe de psicólogos e pedagogos, uma equipe de professores capacitados e uma equipe encarregada do material de apoio. Tudo isso tem um custo bastante elevado. Perguntas: nas atuais escolas cívico-militares a pedagogia tecnicista vem sendo empregada tal como nos colégios militares? Nas novas escolas ela será utilizada? Se não por quê?

Note-se que o processo de uniformização e diferenciação sustentado pela pedagogia tecnicista é movimentado por um tipo peculiar de gerenciamento, que constitui o quarto elemento. Ele diz respeito a uma estrutura na forma de pirâmide em cujo vértice repousa a autoridade máxima. Por essa razão, é centralizadora, para preservar a unidade de comando. Cada setor opera com autonomia, subordinando-se apenas em relação à autoridade de linha, ou seja, na vertical. Este estilo administrativo é o mais antigo e o mais simples de todos, além de ser muito flexível. Embora nos quartéis seja comum a emissão de ordens pela autoridade superior e o devido cumprimento das mesmas nos escalões inferiores, não é raro acontecer que ocupantes de cargos superiores consultem seus comandados antes de tomar uma decisão. Tal estilo permite também que a decisão possa vir a ser tomada de maneira democrática, ou seja, por consenso ou por voto da maioria. Vale notar que as escolas cívico-militares são obrigadas a obedecer à Constituição Federal e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em ambas é previsto que nas instituições educativas seja empregada a gestão democrática. As perguntas que emergem, então, são as seguintes: nas atuais escolas cívico-militares esta forma de gestão vem sendo praticada? Nas novas escolas ela será utilizada? Se não, por quê?

As respostas a estas perguntas e às demais aqui colocadas são bem-vindas, pois, além de contribuírem para um debate mais consistente e profícuo, podem servir para aumentar a rejeição ou a aceitação das escolas cívico-militares como política educacional do atual governo.

Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutor em Educação e autor de "Democracia e ensino militar" e "A reforma do ensino médio e a formação para a cidadania" (no prelo).

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