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O avesso da introversão
| Foto: Pixabay

O jeito mais recatado de ser é quase sempre interpretado como uma dificuldade em se expressar e demonstrar seus sentimentos, ainda mais em um mundo tão dinâmico e exigente no que diz respeito a socialização. O introvertido em meio a tantos estímulos se reserva no direito de acompanhar ao seu modo as ocorrências e interações que se apresentam para ele. Muitas vezes com esta característica pouco valorizada surge um realçar da sua atenção que silenciosamente se expande até alcançar níveis de percepção que não são familiares para a média das pessoas, inclusive aquelas reconhecidas como “tagarelas”.

Estes níveis de percepção conferem uma leitura mais sagaz a cerca do meio ambiente em que o quietinho está inserido, mesmo com certa deficiência em dominar a “cena” ele capta razões não aparentes de comportamentos e consegue resolver ambiguidades que seus interlocutores não se dão conta como intenção dissonante em relação ao que é dito, confusão entre pensar, falar e agir assim como modalidades maquiavélicas tais quais as tentativas de manipulação e chantagens emocionais sutis. A pessoa reservada também apresenta alto grau de tolerância à solidão, o que pode ser considerado uma constatação triste e digna de pena para a sociedade, mas revela um estado de serenidade que de alguma maneira, ainda que de forma branda é “sentida” por onde ele vá.

O carisma não é um atributo necessariamente daquele tipo de personalidade “boa praça” que interage com todos a sua volta sem titubear. Usualmente fazemos esta imagem de pessoa bem-quista, mas conheci muitos tímidos que eram altamente desejáveis em suas presenças ainda que pela docilidade com que escutam os outros e também por exibirem uma qualidade muito rara nos dias de hoje, a capacidade de não julgar: que está imediatamente associada com a confiança. Pessoas que tem um certo pudor em se exibirem em público, podem na maioria das vezes no fundo ter excesso de cautela para não ferir terceiros e agem com prudência necessária para não invadir o espaço alheio e evitar embates com outros egos.

O introvertido tem dificuldade de administrar  muitos estímulos externos e acaba por aprender a se satisfazer com a própria companhia, condição sine qua non para desenvolver o “gênio” em potencial. Não raras vezes se revela essa relação entre timidez e dificuldade em se socializar com a figura de pessoas que alcançaram grandes feitos na humanidade, caso de Bill Gates ou Gandhi. Esta força que se concentra no interior de um introvertido vai se condensando a medida que este canaliza seus recursos psíquicos e mentais para uma causa que abrange a todas as pessoas incluindo ele mesmo. Desse modo passa a ser um instrumento da “providencia divina” que ainda em déficit com a comunicação social é agraciado com uma intuição aflorada que orienta e conduz na sua jornada terrena.

Este tipo de espírito é pouco familiarizado com as contingências do mundo tridimensional que transcorre através da sucessão de eventos aparentemente desconexos. Ele percebe os padrões por trás das histórias que chegam aos seus ouvidos e deduz que a vida prosaica é por demais redundante, como se estivesse visitando o mesmo museu com velhas novidades. Com certa facilidade para não se identificar com arquétipos e manter uma consciência à parte dos acontecimentos que sucedem à sua personalidade, o introvertido recua no plano da existência e se relaciona de maneira diferente com seu entorno às vezes até mesmo sendo taxado de “frio” e distante. Porém com mais atenção é possível notar muitas vezes a gentileza e verdadeiro interesse pelas pessoas que o cercam , de modo que seria difícil encará-lo como um “psicopata”.

Eles, ainda que se sintam deslocados de seus meios prestam um serviço salutar as outras pessoas como por exemplo olhar seus problemas através de outros ângulos. A destreza com que utilizam a mente pode permitir uma fotografia panorâmica da questão apresentada e considerando os fatores intrínsecos à ela faz deduções rápidas e provê muitas vezes uma solução inesperada. Sempre são bons psicólogos, porque acima de tudo são bons ouvintes!

Este temperamento por ser pouco reconhecido pela sociedade já que não produz resultados imediatos, é invariavelmente subestimado e disso decorre uma auto depreciação por parte daqueles que o possuem. As exigências dos sentidos não alcançam a vastidão da uma obra que está sendo tecida silenciosamente e que necessita de longo período para ser maturada e mostrada a publico, e mesmo seu autor pode-se enganar através daquela parcela egótica que repreende e reconhece algum valor em críticas externas e puxões de orelha.

Já é sabido pela neurociência que o cérebro de um introvertido funciona de maneira diferente daqueles considerados extrovertidos. Existe uma dificuldade de processamento de informação que tende a ser mais lento do que os outros e desse modo o tempo de estímulo/resposta também é afetado. Muitas vezes essa é a razão por se sentirem em verdadeiro descompasso com o mundo que o cercam e acabam sendo considerados antissociais por apresentarem essa falta de integração sensorial. Este tema é muito bem delineado em O poder dos quietos de Susan Cain com demonstração de estudos e exemplos da própria autora com suas dificuldades de comunicação e como sublimou sua timidez.

Muitas vezes caímos no engodo de que comunicação equivale a falatório e extroversão, o que de fato tem sua utilidade no contexto social porém não necessariamente essa é a forma mais “adequada” pela qual podemos sentir o outro através da capacidade da inter-subjetividade, o que em última análise nos coloca diante do exercício efetivo de relacionamento. O mundo formal e temporal que requer elementos pelos quais se mantém a aparência das coisas se diferencia do mundo mental e psíquico que são instâncias da onde o sujeito introvertido se nutre verdadeiramente. E esses dois tipos de modelos e interações entre ambos complementam necessidades, um de ordem prática a outra de ordem anímica e metafísica.  Por exemplo, em um ambiente corporativo não se faz necessário e imperioso ser verdadeiro e transparente no que se pensa e no que se faz, pelo contrário, na maioria das vezes é vital a manutenção das aparências para que interesses da empresa não se dilua em eventos menores que não obrigatoriamente influem nos resultados desta.

O primado da eficiência do fluxo de informações e em linguagem impessoal é da natureza mesma das relações empresariais, sem nenhum abono por isso no que diz respeito a sua utilidade. Assim como no ambiente corporativo o entretenimento também se dá em um plano raso e superficial para assimilação mais rápida do produto oferecido. Filmes hollywoodianos e músicas pop são exemplos do que é de fácil degustação e essas atrações possuem seu lugar no quadro de necessidades humanas, a partir de uma abordagem simples e acessível nos sentimos pertencentes a comunidade através de signos que nos são familiares a todos. Porém quando entendemos que apenas o “oficial” é verdadeiro nos acovardamos para novas possibilidades e é aí aonde os gênios quietos entram em cena. Haverá um dia que o silêncio será valorizado no ocidente assim como é no oriente pelos seguidores de sua sabedoria autêntica.

Mesmo dentro dessa agitação estéril há de nascer uma semente da atenção plena que engloba as ocorrências e as absorvem na pureza do discernimento que compreende e diferencia as suas qualidades mais sutis. Quando entendemos que silêncio é intenção e intenção é poder, vamos rever nossos conceitos a respeito daqueles que são “guardados” para serem “aguardados” sem julgar seu próprio tempo e apenas os acolhendo em solidariedade, pois jamais saberemos o que reserva em seu interior.

Rodrigo Damaso é estudante de filosofia e lançará em breve seu primeiro livro de crônicas sobre temas variados como cultura, sociedade, política e espiritualidade. Apresentou trabalho no congresso nacional de psicanálise em 2019.

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