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O Big Bang do crédito financeiro
| Foto: Pixabay

A última reunião de 2019 do Copom, em dezembro, provavelmente irá selar a previsão da grande maioria dos economistas: uma taxa Selic de 4,5% a.a. Com a inflação projetada para 2020 em 3,5% a.a, isto quer dizer que o Brasil viverá um ano de remuneração quase zero para aplicadores em renda fixa.

É sabido que a queda dos juros é um movimento que está vigorando no mundo todo já há bastante tempo. No Brasil, por questões diversas e muitas vezes também perversas, a queda dos juros foi atrasada mas veio.

Também é conhecida a relação direta entre juros e risco de crédito: mais risco, mais juros. Menos juros, menos risco. É uma lei econômica, fundamental como a lei da oferta e procura ou como várias leis da física.

Os maiores especialistas no mundo em juros e riscos sempre foram os bancos, ou mais genericamente, os financiadores de crédito. Aqueles que emprestam dinheiro. Emprestar com juros para quem não paga é um risco diário com o qual os financiadores vivem desde o início da civilização e ao longo do tempo as avaliações tornaram-se sofisticadas, inclusive incorporando os avanços tecnológicos da computação.

A avaliação do risco de emprestar pode ser vista a partir de duas variáveis: 1) o risco do negócio em si e 2) o risco do tomador não pagar se o negócio não der certo. Para o primeiro risco, os analistas de crédito montam algoritmos quantitativos e qualitativos, projeções e muita estatística. Se ainda assim tudo falhar, uma grande dose de confiança no tomador do empréstimo e nas suas garantias deveriam cobrir o prejuízo. Aí somam-se aos analistas os negociadores e advogados especializados em recuperar o dinheiro ou parte dele.

Porém, há duas peculiaridades que diferenciam a avaliação do risco de crédito no Brasil do restante do mundo dos baixos juros: 1) um cenário econômico e regulatório em constante alteração, que traz insegurança e mais risco para emprestar e 2) uma legislação fraca e confusa que dificulta que a garantia seja executada quando o negócio fracassa. Leva tempo, custa dinheiro e nem sempre traz recuperação da dívida. Por conta disso, a diferença entre a taxa de juros de aplicação e de empréstimo, simplificadamente chamada de spread bancário, é tão alta. O risco de emprestar é alto. Pelo menos, é assim que os bancos tradicionais pensam e agem.

Com a tendência de juros real de aplicação virtualmente em zero, a procura pelos títulos públicos de renda fixa vai cair

Pois bem, neste tempo de juros declinantes e tecnologia exponencialmente crescente, o crédito tomou rumos inovadores: sobram aplicadores que recebem cada vez menos dos títulos públicos e estão dispostos a se arriscar em outros ativos financeiros e surgem semanalmente novas empresas que apresentam novas modelagens para avaliar risco, todas baseadas em altíssima tecnologia. São as fintechs, bancos digitais, marketplaces de crédito etc.

Para quem está entrando agora no mercado de crédito a percepção de risco é um pouco diferente. Primeiro, existe a crença de que os algoritmos conseguem baixar o risco, pois escolhem melhor o tomador de dinheiro. Segundo, diluem ainda mais o risco no volume gigantesco de operações que podem gerenciar através de learn machines (máquinas que aprendem a conceder crédito melhor e mais rápido).

A combinação acima, ou match como queiram, é assustadoramente crescente no mundo todo. Particularmente, o cenário brasileiro foi perfeito para isso. O país é sedento por tecnologias digitais, os juros para aplicadores despencaram desde início de 2019 e o consumidor de crédito estava desamparado pelo freio que os bancos tradicionais impuseram nos empréstimos. Assim, os ingredientes para oferta abundante de crédito estão fermentando e com isso surgiram novos especialistas em conceder crédito. Ou, pelo menos, empresas novas que se julgam especialistas nessa velha arte de emprestar.

Maior o risco, maiores os juros. E se menores os juros, menor o risco. É a lei econômica. Só que no Brasil atual, algo está prestes a mudar. Com a tendência de juros real de aplicação virtualmente em zero, a procura pelos títulos públicos de renda fixa vai cair. Até aí, tudo certo e em linha com a teoria. Afinal, o Brasil ainda não atingiu um patamar de segurança que permita que ele seja avaliado como grau de investimento. Assim, comprar títulos públicos do Brasil deveria remunerar mais do que o 1% a.a. que se projeta para 2020. O investidor irá buscar alternativas mais rentáveis. Uma boa parte está indo justamente para a concessão de crédito para pessoas físicas e jurídicas.

É quando começa o que chamo de “singularidade do crédito”. O termo “singularidade” foi consagrado na física. Ele designa momentos onde determinados fenômenos observados deixam de obedecer às leis da física e seu comportamento torna-se imprevisível. É assim com a teoria do Big Bang, buracos negros e outras tantas ideias que soam como ficção para nós, tão distantes e complexas que são. Mas a realidade está nos surpreendendo a cada dia e nos aproximando dos cenários de Hollywood ou, melhor, do Vale do Silício. Os avanços tecnológicos estão definitivamente ameaçando as leis da física e também as leis econômicas. Tecnologia 5G, computação quântica, biotecnologia e nanotecnologia são apenas alguns exemplos de tantos outros. Eles trazem revoluções imediatas e profundas nas relações econômicas de trabalho, de produtividade, de rentabilidade de ativos e, aonde quero chegar com meu raciocínio, na avaliação de riscos.

As novas empresas de concessão de crédito têm a abundância dos recursos advindos dos aplicadores insatisfeitos da renda fixa e a alta tecnologia à sua disposição para direcionar o dinheiro do aplicador até o tomador. Resultado disso é uma nova precificação do risco (do spread, se preferirem), forçando juros de crédito para baixo (lei da oferta e procura). Menos juros, menos risco. Só que agora não parece ser tão óbvia esta conclusão. Afinal, o tomador do dinheiro, se for pessoa física, está num país com baixo crescimento, num continente com instabilidade político-social e num mundo onde as relações de trabalho sugerem perpetuidade do alto nível de desemprego em favor de automações crescentes em todos os níveis profissionais. Se o tomador for pessoa jurídica, some-se tudo isso ao fato de que a produtividade das empresas brasileiras é baixa e com menor rentabilidade e capacidade para pagar empréstimos. Então, menos juros não se traduz em menor risco quando se fala em mercado de crédito no Brasil de 2020.

A falta de capacidade de diminuir o endividamento está acontecendo no Brasil desde 2008, quando a “marolinha” da crise dos subprimes atingiu o país. De lá para cá, são incontáveis as empresas que apenas seguem rolando suas dívidas com os bancos. Dados recentes mostram que o endividamento das empresas mais que dobrou de tamanho entre 2010 e 2019. Falta crescimento e rentabilidade para diminuir o endividamento. E agora, com esta onda de crédito que se aproxima, será um desafio para quem emprestar criar algoritmos que garantam que o dinheiro vai voltar.

De 2020 em diante, desconfio que muitas empresas novas que se dedicam à antiga arte de emprestar dinheiro deveriam pensar nos aspectos da “singularidade do crédito” como um buraco negro, sugando tudo a sua volta.

Fábio Astrauskas, economista, professor do Insper e CEO da Siegen.

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