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Cabe ao BNDES indicar claramente de que modo o interesse público será atendido com a destinação de bilhões de reais para viabilizar uma controversa fusão entre grandes grupos privados

O universo empresarial brasileiro sofreu grande abalo com a divulgação do plano de fusão do Pão de Açúcar com o Carrefour, operação que, concretizada, criará a maior rede de supermercados do Brasil. A notícia veio cercada de polêmicas, seja por causa da reação do acionista francês do Pão de Açúcar, Casino, que se viu prejudicado e promete ir à guerra para barrar o negócio, seja por conta da participação do BNDES, que vai viabilizar a fusão com um aporte de nada menos que R$ 4 bilhões.

A participação do BNDES na operação coroa uma prática que vem sendo por ele adotada já há alguns anos: a destinação de recursos bilionários para a criação de "campeões nacionais", grupos empresariais escolhidos de modo pouco transparente para se tornarem grandes conglomerados brasileiros, podendo assim competir com concorrentes estrangeiros, aqui e alhures. Foi para criar "campeões nacionais" que o BNDES destinou bilhões para o financiamento da aquisição da Brasil Telecom pela Oi, ou para viabilizar o projeto de expansão do frigorífico JBS-Friboi. Os afortunados – e bem conectados – eleitos recebem do BNDES financiamento em condições especialíssimas, pagando juros subsidiados de 6% ao ano. Trata-se de dinheiro público, é bom lembrar, já que o BNDES é uma empresa estatal – assim como o é o BNDESPar –, cuja principal fonte de recursos é o Tesouro Nacional, que por sua vez capta dinheiro no mercado financeiro pagando juros de cerca de 12% ao ano.

Mas cabe perguntar: a criação de "campeões nacionais" interessa à sociedade brasileira ou apenas aos acionistas dos conglomerados empresariais favorecidos pelo BNDES?

A operação envolvendo o JBS-Friboi serve como bom exemplo. Com dinheiro do BNDES, a empresa adquiriu frigoríficos nos Estados Unidos, na Austrália e na Argentina, onde gera hoje milhares de empregos. No Brasil, o JBS-Friboi adquiriu outros tantos frigoríficos de pequeno e médio porte, que, em crise, não tiveram a sorte de contar com financiamento público subsidiado. O resultado de tais aquisições domésticas foi a concentração do mercado de produção de carnes, em prejuízo dos consumidores. Não é fácil entender de que modo a sociedade brasileira foi beneficiada com tais operações, que só foram viabilizadas por conta da participação do BNDES.

Tampouco é fácil identificar o interesse público que será atendido com a fusão do Pão de Açúcar com o Carrefour. Não parece haver dúvida de que a operação reduzirá drasticamente a concorrência, redundando em grande concentração de mercado nas mãos de uma única rede varejista, novamente em prejuízo dos consumidores. E nem se diga que a fusão facilitaria o ingresso de produtos brasileiros nos supermercados europeus, como sugeriram alguns membros do governo federal. Ora, o Pão de Açúcar já conta com um sócio francês, que é um dos maiores varejistas da Europa, e nem por isso queijos brasileiros são encontrados nas prateleiras dos supermercados franceses. Se há óbices ao ingresso de produtos brasileiros no mercado europeu, o problema por certo não decorre de dificuldades de relacionamento com os supermercados locais.

A verdade é que não são claros os critérios que levam o BNDES a escolher os seus "campeões nacionais". E a falta de transparência não é compatível com a atuação de uma empresa estatal. Afinal, ainda que regidas pelo direito privado, as empresas estatais integram a administração pública, e como tal somente podem agir para buscar a satisfação de algum interesse da coletividade, pois do contrário não teriam sido criadas pelo Estado. Como integrantes da administração pública, ademais, as estatais devem agir com observância aos princípios do direito administrativo, tais como isonomia, publicidade, moralidade e razoabilidade, tal qual se lê do art. 37 da Constituição Federal.

Assim, cabe ao BNDES indicar claramente de que modo o interesse público será atendido com a destinação de bilhões de reais para viabilizar uma controversa fusão entre grandes grupos privados, dinheiro que poderia estar sendo direcionado para o fomento de outras atividades de maior relevância econômica e social, como obras de infraestrutura ou o desenvolvimento de pequenas e médias empresas.

Rafael Munhoz de Mello, advogado, mestre em Direito do Estado (PUCSP), é membro do Conselho Seccional da OAB/PR.

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