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O coronavírus e o sistema de prevenção à insolvência
| Foto: Daniel Derevecki/Arquivo/Gazeta do Povo

A pandemia da Covid-19, além de provocar risco de dano concreto e sério para a saúde dos seres humanos, está implicando também numa “pandemia econômica” de efeitos ainda incalculáveis para a liquidez financeira das empresas de todo o mundo. Contemporâneo com essa situação, o deputado federal Hugo Leal apresentou o Projeto de Lei 1.397/2020, de natureza emergencial e transitória, para ter vigência até 31 de dezembro de 2020 ou até quando durar o estado de calamidade, em que elencou diversas medidas interventivas no sentido do enfrentamento da crise de liquidez das empresas, com o objetivo de prevenir a insolvência empresarial e o consequente desaparecimento de empresas viáveis.

No dizer do juiz de Direito Daniel Carnio Costa, o PL 1.397/20 cria um “faseamento” preventivo e desburocratizado antes de se buscar, desde logo, o acionamento do Poder Judiciário por meio de demandas complexas e demoradas que acabarão por sufocá-lo; ao mesmo tempo, facilita a retomada econômica da atividade empresarial.

O referido projeto de lei pretende instituir “medidas de caráter emergencial destinadas a prevenir a crise econômico-financeira do agente econômico, seja ele pessoa natural ou jurídica que exerça ou tenha por objeto o exercício de atividade econômica em nome próprio independente de inscrição ou da natureza empresária de sua atividade”. Nosso objetivo, aqui, é tratar exclusivamente do Capítulo I do PL, que tem como título “Sistema de Prevenção a Insolvência”.

Nesse particular, o projeto acaba representando um grande avanço legislativo, na medida em que abrange todas as atividades econômicas empresárias formais e informais, o que bem se coaduna com a realidade brasileira, já que, segundo pesquisa do Pnad/IBGE do ano de 2019, cerca de 19 milhões de brasileiros atuam na informalidade, praticando negócios e exercendo atividades empresárias diversas.

O PL 1.397 propõe uma primeira fase no tratamento da crise de liquidez das atividades empresariais (artigos 3.º e 4.º) em que, no prazo de 60 dias a contar da vigência da lei, deverão ficar suspensas as ações judiciais de natureza executiva que envolvam discussão ou cumprimento de obrigações vencidas após 20 de março de 2020, bem como ações revisionais de contrato. Além disso, o PL ainda prevê que, na vigência da lei, ficam vedadas a realização de excussão judicial ou extrajudicial das garantias reais, fiduciárias, fidejussórias e de coobrigações, a decretação de falência, o despejo por falta de pagamento ou outro elemento econômico do contrato, a resolução unilateral de contratos bilaterais, sendo considerada nula qualquer disposição contratual nesse sentido, inclusive de vencimento antecipado, e a cobrança de multas de qualquer natureza.

Veja-se que, numa primeira fase, todos os atos acima referidos ficam vedados por 60, sendo que durante esse período de suspensão o devedor e seus credores deverão buscar, de forma extrajudicial e direta, a renegociação de suas obrigações levando em consideração os impactos econômicos causados pela pandemia. Essa possibilidade de negociação direta entre devedor e credor, sem os riscos contratuais e judiciais, significam um gap, uma lacuna que permite evitar que haja a rescisão em massa de inúmeros contratos. Não se trata de uma moratória, mas de uma prorrogação baseada no dado concreto originário da falta de liquidez de caixa dos agentes econômicos, consectário de estarem com suas atividades obstadas por decorrência do isolamento social, ou com a sua demanda reduzida por causa do isolamento vertical ou distanciamento.

E, do mesmo modo, ao Poder Judiciário está vedado agir de modo a impor soluções judiciais específicas e triviais a esses mesmos agentes econômicos. Como defende o juiz Daniel Carnio Costa, o objetivo é proteger a empresa ou empreendimento viável, mas que em razão da pandemia está com sua capacidade de liquidez momentaneamente afetada.

Ocorre que o próprio PL, prevendo a hipótese de que durante os 60 dias de suspensão (a primeira fase) não tenha sido possível obter êxito na negociação do devedor com os credores, está propondo, então, a utilização de um novo procedimento – a segunda fase – de jurisdição voluntária, para negociação preventiva, em que o devedor, para se valer do mesmo, deverá comprovar, como requisito de procedibilidade processual, a redução igual ou superior a 30% do seu faturamento comparado com a média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior, comprovação essa que deverá ser atestada por contador. Esse novo procedimento, denominado de “negociação preventiva”, poderá ser utilizado uma única vez, e o protocolo do seu pedido acarreta nova e imediata suspensão, de 60 dias, de todos aqueles mesmos atos objetos de suspensão na primeira fase, sendo que o devedor poderá facultativamente requerer ao juiz que nomeie negociador a cargo do devedor, para conduzir os trabalhos de negociação preventiva, sendo que a final, decorrido o prazo de 60 dias, com a apresentação do relatório das negociações pelo devedor ou pelo negociador, o juiz determinará o arquivamento dos autos.

Veja-se que o referido procedimento não admitirá discussão quanto ao seu objeto, ou seja, não haverá litigiosidade, não cabendo resposta, manifestação ou averiguação pericial, de modo que seu objetivo é apenas estabelecer uma negociação preventiva, em que se permitirá facultativamente a participação dos credores em sessões de negociação.

O PL, apesar do esforço e não obstante a abrangência de atingir ambos os setores, informal e formal, ainda assim precisa ser melhor aprimorado. Isto porque, apesar de mencionar a suspensão das ações judiciais executivas e revisionais, bem como a não decretação de falência e de despejo, não estabelece, por exemplo, se o Judiciário, ao ser acionado com novas demandas dessas naturezas nesse período transitório, deverá de plano indeferi-las ou deverá recebê-las, deixando-as suspensas.

Em nosso sentir, se o espírito do projeto de lei é o de evitar uma enxurrada de novas ações judiciais, então deveria ficar claro no PL 1.397 que o Judiciário, de maneira indistinta, nesse período transitório de vigência da lei, não poderia receber qualquer nova ação de execução, revisional, despejo ou falência, assim como nenhum Oficial Registrador de Imóveis poderia receber qualquer requerimento de notificação extrajudicial para consolidação de garantia fiduciária de imóvel.

De todo modo, também entendemos prudente que o PL previsse, ainda, a exigência de que todos os devedores, no prazo mínimo de até 30 dias de vigência da lei, procedessem a notificação extrajudicial de seus credores a fim de apontar que pretendem se valer do benefício temporal admitido pela legislação para buscar uma solução negociada. Uma previsão dessas, utilizada pelos meios disponíveis de comunicação, inclusive eletrônicos, serviria para que de fato se pudesse criar um ambiente inicial de negociação, cumprindo assim o escopo da lei de se buscar o entendimento das partes, evitando tanto quanto possível o retardamento injustificado no cumprimento das obrigações.

Outro apontamento que se faz é referente à nomeação de negociador para condução dos trabalhos de negociação preventiva quando esta já está judicializada, na segunda fase. É que, embora de postulação facultativa pelo devedor ao juiz, conforme previsto no PL, é evidente que essa disposição acaba por ir de encontro à sua capacidade financeira já reduzida, de modo que mais salutar seria se, por exemplo, esse negociador profissional fosse custeado pelo próprio Judiciário, ou que se pudesse aproveitar os conciliadores do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc).

De outro lado, em relação ao prazo proposto de 60 dias para cada uma das fases de negociação, nos parece à toda evidência muito pequeno para se conseguir uma negociação efetiva, já que na prática é sabido que o estado de calamidade decretado pelo governo tem prazo para durar até 31 de dezembro de 2020, e é sabido que a retomada da economia será lenta, de modo que um prazo de apenas dois meses para cada uma dessas fases poderá inibir os credores, fazendo com que apenas aguardem o seu transcurso para, na sequência, proporem suas medidas judiciais, o que se contrapõe ao espírito do legislador de evitar o sufocamento do Judiciário com milhares de novas demandas. Nesse sentido, talvez o prazo mais adequado para uma negociação efetiva em cada uma das fases seria de no mínimo 90 dias, ou até enquanto durar o estado de calamidade, dividindo-se as duas fases em prazos iguais.

Enfim, como bem já pontificou o professor Cássio Cavalli recentemente, as empresas passam por grave crise financeira, havendo “um monumental descompasso entre o tempo econômico e o tempo financeiro”; citando Lawrence Summers, expõe que “o tempo econômico parou por causa da pandemia, mas o relógio financeiro continuou a girar. Pagamentos de juros, aluguéis e outras obrigações ainda se vencem, mas o dinheiro para arcar com eles secou”. Por isto, é crucial compreender, no mesmo sentido já proposto por Cassio Cavalli, que devem ser “rapidamente implementadas medidas legislativas eficazes para conter a crise antes que ela se espalhe”.

Neste sentido, nossa análise final, ao par da exposição, críticas e sugestões que pontuamos, tem como pressuposto fortalecer a ideia de que é preciso reconhecer que a iniciativa proposta pelo Projeto de Lei 1.397/2020, de criação de um sistema de prevenção à insolvência, de caráter transitório, merece ter sua implementação realizada com a máxima urgência, a fim de que se permita desde logo o enfrentamento da crise, impedindo que devedores e empresas informais e formais desapareçam do mercado, evitando ainda que o Judiciário seja abarrotado por milhares de demandas.

Alan Rogério Mincache é mestre em Direito Empresarial e especialista em Direito Processual Civil. Adriana Federiche Mincache é pós-graduada em Direito Empresarial LLM.

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