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O debate assimétrico e a moralidade da esquerda: a era do consenso
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Em artigo publicado no recente livro La izquierda como autoritarismo en el siglo XXI, de 2019, a cientista política Colette Capriles aponta que a moralidade da(s) esquerda(s) advém da ideia de que os seus partidários são os autênticos agentes salvadores da humanidade, envolvidos em uma luta emancipatória travada contra o capitalismo. Tal heroísmo os converte na própria raça humana e é razão suficiente para que eles se julguem capazes de decidir o que é humanidade e, consequentemente, excluir o que não é.

O “progressismo” atual, que engloba uma enormidade de teorias, ideologias e partidos, reduz tudo que lhe é oposto a regressismo tacanho e perigoso, periculosidade tipificada por meio de uma constante histeria e fundamentação moral, pois o que não atende a agenda progressista é, acima de tudo, mau. O arranjo em questão se materializa de forma muito mais abrangente e sorrateira do que exemplificado anteriormente, uma vez que não se trata apenas de partidos e teorizações, mas de uma ideologia una, apesar da complexidade, ou da essência de uma época, que, para o ensaísta Wesley Yang, é a base ideológica sucessora do liberalismo, do espírito liberal nos EUA.

Publicado este ano no site Persuasion, o texto Rhetorical Calvinball, do professor de Filosofia Matt Lutz, indica que muitos dos participantes atuais do debate público agem como numa espécie de calvinball, um metajogo presente nos quadrinhos de Calvin e Haroldo, no qual os participantes buscam mudar as regras do jogo de modo a tornar as suas ações vitoriosas e, assim, derrotar o oponente. O que é o debate contemporâneo além de mera extensão da ilusória pretensão das esquerdas, dos progressistas de salvar o mundo e derrotar os grandes vilões – claro, à direita? A cultura do cancelamento é a marca essencial do atual debate público, determinado pelas aspirações e agenda progressista, o que inclui e define o julgamento moral dos opositores.

A teoria propriamente dita tem pouca importância, vide a crise do paradigma marxista desde o fim do século 20 com a decadência do socialismo real, somada à incapacidade das esquerdas de proporem soluções alternativas ao capitalismo e/ou superarem o Welfare State, o que torna a esquerda dividida entre os saudosos do velho modelo fracassado e aqueles que desejam novos modelos, que até o momento inexistem, como explicava o geógrafo Luis Diniz em Por uma crítica da geográfica crítica, de 2013. Para tanto, as ações dos campos progressistas contemporâneos nascem de uma base entrecortada entre o fracasso e o inexistente, o que leva à necessidade da constante crítica dos modelos e mundo atuais, agrupados sob o estigma de capitalistas, exploradores e maus; afinal, se o que existe é terrível, não é tão ruim se apoiar em tentativas fracassadas que tinham boas intenções.

Todavia, o processo de moralização da esquerda só pode tomar forma partindo de uma constante diminuição e ocultação de eventos, fatos históricos e contemporâneos, dado que o século 20 por si só é ficha criminal suficiente para aterrorizar qualquer um que se declare de esquerda. O livro negro do comunismo, de 1997, estima cerca de 100 milhões de mortes nos regimes vermelhos do século passado, o que concede ao campo da esquerda a façanha de, em meio à natural agressividade humana explicitada por Freud, ser o condutor mais mortal de toda a história da humanidade. Acrescenta-se que o cientista político americano Rudolph Rummel, responsável por cunhar o termo “democidío” para os assassinatos cometidos por governos e notório pesquisador da violência, expôs que a tragédia soviética no século 20 quantifica-se em cerca de 60 milhões de mortes, indo além, portanto, dos 25 milhões contabilizados, inicialmente, no livro organizado pelo historiador Stéphane Courtois.

Como a ocultação não é suficiente sempre, por vezes é necessário buscar a equiparação. O livro negro do capitalismo, de 1998, busca contabilizar o número de mortes causadas pelo capitalismo, em um apanhado de ensaios críticos ao sistema. Foi necessário testar os limites da elasticidade teórica para que se pudesse chegar perto da quantidade de mortes causada pelos líderes revolucionários do século passado. O número final alcançado pelos organizadores da obra é de pouco mais de 100 milhões de mortes causadas pelo capitalismo. Óbvio que o capitalismo considerado pelos autores do livro se espalha worldwide, o que, ironicamente, torna a façanha do comunismo ainda mais gigantesca, dada a disparidade populacional entre os mundos capitalista e comunista no século 20. Por tudo ser capitalismo, quem paga a conta das duas guerras mundiais são os vilões de sempre. Mas o que impressiona é que, depois de somado tudo o que for possível na conta dos capitalistas, os camaradas ainda lideram com folga o ranking de mortes... A sorte grande é que, no fim das contas, o povo nunca foi muito com a cara dessa história de comunismo, o que fica claro pelo número de mortes de infiéis nos países que aderiram à profecia marxista.

Se antes era necessário ocultar ou equiparar, atualmente basta o consenso, encarnação da razão, alcançado pela intersecção de opiniões ou pontos opinativos sobre quaisquer assuntos, por parte dos atores principais dos meios midiáticos, intelectuais e militantes. Não se trata mais da busca pela verdade, pois essa morreu com o advento dos pós-modernistas; logo, tampouco se trata da ação e da discussão racional. A era do consenso tornou a estupidez dos políticos à esquerda genialidade e a mesma estupidez, só que em lado oposto, monstruosidade; transformou direita em sinônimo de extremismo e neostalinismo em assunto sério; resumiu a sociedade em preto e branco; converteu acadêmicos em intelectuais e celebridades em comentadores sérios.

O debate público passou a estar contido em único questionamento: quem concorda com você? Não é difícil imaginar que tipo de resposta é válido. O consenso certifica a vilania do capitalismo, o cancelamento dos ofensores e o humanismo divinizado da esquerda.

Fábio Tavares é professor, graduando em Geografia e Pedagogia, coordenador do pré-vestibular social INVM e membro do Grupo de Pesquisa Gestão Territorial no Estado do Rio de Janeiro da PUC-Rio.

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