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O deep State
| Foto: Fabio Abreu

Se a esquerda sempre teve “as elites” para demonizar e, com isso, avançar com seu projeto demagógico, a direita populista também conta com uma espécie de bode expiatório para levar a culpa por quase todos os males que assolam o país: o “deep State”. Ou, se preferir, o establishment, o estamento burocrático que controla, na prática, o Estado. Quanto de verdade há nessas críticas?

Antes de mais nada, é preciso definir melhor o que se entende pelo termo. Quando se diz “deep State”, o que se tem em mente é um Estado dentro do Estado, um conluio de funcionários públicos que, sem terem sido eleitos, dão as cartas no jogo político por controlarem o aparato estatal. Se antes o discurso tinha cores mais conspiratórias, após os vazamentos do Wikileaks ficou evidente que algo dessa natureza, de fato, existe. Resta saber quanta influência ou organização realmente possui.

Vale notar que, como muitas coisas em política, a ideia original dessa burocracia poderosa era louvável. O próprio Max Weber defendia uma espécie de organização humana baseada na racionalidade, ou seja, os meios devem ser analisados e estabelecidos de maneira totalmente formal e impessoal, a fim de alcançarem os fins pretendidos. Teríamos uma tecnocracia blindada de pressões políticas ou partidárias, tomando decisões com base na razão e mirando naquilo que realmente interessa ao povo governado, dando também certa continuidade ao bom funcionamento do serviço público.

Na teoria, louvável. Na prática, nem tanto. À medida que essa burocracia foi concentrando mais e mais poder, sem a necessidade de prestar contas a eleitores, o arbítrio se tornou irresistível, e aquilo que deveria ser do “interesse nacional” muitas vezes se chocava com os interesses particulares dessa casta privilegiada. Sendo a natureza humana o que é, era evidente que teríamos abusos.

Trump declarou guerra ao “deep State” – que, por sua vez, já tinha declarado guerra a ele antes

O poder corrompe, e o egoísmo campeia. Há toda uma escola de pensamento, fundada em Virgínia, só para analisar as “falhas de governo”, lembrando que as pessoas por trás do Estado continuam sendo seres humanos, reagindo, portanto, ao mecanismo presente de incentivos.

No livro que mencionei na coluna passada, The case for Trump, o historiador Victor Davis Hanson analisa o quanto de verdade há nesse ataque feito pelo magnata ao “deep State”, e que foi parte importante de sua campanha vitoriosa. “Drenar o pântano em Washington” era um de seus slogans mais repetidos. Trump declarou guerra ao “deep State” – que, por sua vez, já tinha declarado guerra a ele antes.

A premissa era de que o establishment tem tamanho poder, prestígio e autoridade que não tem necessidade de revelar suas metodologias e fontes, uma vez que reivindicou o fundamento moral mais elevado e sentiu que não tinha apenas o direito, mas de fato o dever de derrubar o veredicto da eleição de 2016. Trump era um perigo para a América, e caberia aos burocratas impedir que chegasse ao poder ou que governasse, caso eleito.

Segundo Hanson, todos os grandes impérios do passado criaram esse tipo de “deep State”, até mesmo para proteger reinos de eventuais reis loucos ou intempestivos demais. Todo tipo de trama e traição, das quais vemos em filmes ou no Game of Thrones, ocorria nos bastidores, dentro desse “deep State”. Cabeças de monarcas rolavam, mas às vezes esse estamento burocrático permanecia imune.

Normalmente o carreirista de Estado está mais interessado em sobreviver que em prestar um bom serviço público. O onipresente Alcibíades, ateniense do quinto século, foi um imperialista democrático, um simpatizante da oligarquia, um procurado fora-da-lei do Estado ateniense, um vira-casaca trabalhando para Esparta, um democrata ateniense e um exilado aristocrático sob a proteção da Pérsia. O denominador comum era seu manipulativo e habilidoso dom para a sobrevivência na política grega. Eis a marca do típico representante do “deep State”.

Em exemplo mais recente, temos Talleyrand, que, por mais de 40 anos, foi uma figura permanente da corte de Paris e, portanto, em sucessão, defensor e traidor do Antigo Regime, da Revolução Francesa, de Napoleão e da monarquia restaurada. Sua lealdade era para com a carreira de Monsieur Talleyrand, e não para com a França, muito menos para a monarquia, a revolução, o governo republicano ou a ditadura. Se quisermos um caso brasileiro, talvez José Sarney sirva, ou então seu análogo na área econômica, Delfim Netto.

Analisando o caso americano, Hanson mostra como esse “deep State” esteve empenhado em impedir a vitória ou o governo de Donald Trump. Em 2016, cerca de 95% de todas as doações de funcionários federais para as duas campanhas presidenciais foram para Hillary Clinton, aparentemente sob a premissa de que sua agenda de maior regulamentação, impostos mais elevados e mais “direitos” se traduziria em mais empregos federais e mais altos salários. Interesse nacional ou da própria burocracia?

Trump chegou para causar uma ruptura nisso, apontar nomes de fora sem experiência ou sem fazer parte da patota, demitir funcionários com longas carreiras de Estado, ignorar os conselhos dos “sábios” de Washington. Ele teve a coragem de expurgar ativistas “progressistas” de altos cargos do governo, ou cortar verbas federais que financiavam essa turma influente. Enfim, o presidente comprou briga com a elite que comandava o show até então.

Mas, como mostra Hanson com vários casos, o lado de lá não aceitaria calado tanto desaforo. Vários funcionários de Estado, em conversas vazadas, tinham deixado a suposta imparcialidade de lado para transformar Trump em alvo de todo tipo de ataque. Servidores do FBI atestaram que não deixariam o magnata bufão ser presidente. O alegado conluio com os russos foi usado como pretexto para investigações infindáveis, que nada provaram. Trump não podia confiar no staff da base, justamente porque sabia que esses funcionários desejavam sua cabeça para preservar as próprias regalias e poder.

Nunca na história da presidência, conclui Hanson, um presidente ganhou a antipatia da grande maioria dos meios de comunicação, grande parte do establishment de ambos os partidos políticos, da maioria dos bilionários e da burocracia federal permanente. Não obstante, até aqui temos visto bons resultados. Para desespero do “deep State”...

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.

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