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O dilema da regulação de conteúdo na internet
| Foto: AFP

Recentemente, mais de 20 pessoas foram mortas em um tiroteio ocorrido em El Paso, no Texas. O autor do atentado fez uso de um fórum da internet chamado 8Chan para divulgar um manifesto em que fez uma descrição dos seus supostos motivos para o ataque, o equipamento que seria usado e as consequências que ele já esperava para o seu ato criminoso. A Cloudflare, empresa que oferece um serviço criado para impedir ataques a sites, tomou a decisão de cortar o 8Chan da sua lista de clientes e, assim, tirá-lo do ar.

Apesar de esta decisão ter sido tomada de forma extremamente rápida, não podemos imaginar que esta tenha sido uma decisão simples, embasada por regras claras. Na verdade, há poucos anos, esta mesma empresa havia se recusado a interromper o mesmo serviço para defensores do grupo terrorista Estado Islâmico. A internet ainda é uma tecnologia nova demais para que possamos ter um conjunto de regras sobre o que deveria ser feito no caso de situações como esta.

A Cloudflare foi criada com o propósito de trazer segurança para sites e aplicações por meio de um software na nuvem, e não de um hardware como normalmente era feito até então. A alternativa oferecida por eles acabou se mostrando mais simples, prática e competitiva para uma grande fatia do mercado. Esta empresa, cuja especialidade está em questões relacionadas à infraestrutura e segurança de redes, é quem de repente se encontrou (ou se colocou) na posição de decidir quais são as informações que devem ter o direito de ser divulgadas.

Não há bons motivos para pensar que um determinado conteúdo deveria ter sua existência negada a priori por aquelas empresas de infraestrutura que poderiam garanti-la

Do mesmo modo, um grupo bem pequeno de empresas de tecnologia está, cada vez mais, se tornando responsável pela decisão sobre quais informações têm o direito de circular livremente e quais devem ter a circulação restringida. A posição específica ocupada por cada um destes gigantes da tecnologia dentro da pilha tecnológica leva a diferentes possibilidades de atuação e sugere níveis distintos de responsabilidade pelos seus atos.

No contato direto com o usuário final, estão plataformas como Facebook, Twitter e o próprio 8Chan. Não é de estranhar que redes deste tipo se deem o direito de fazer algum tipo de filtragem naquilo que virá a ser publicado junto à sua marca. Em um nível mais técnico, estão empresas de hospedagem e provimento de acesso à internet. Mesmo após a revogação da lei de neutralidade de rede, não é de se esperar que estas empresas sejam responsabilizadas pela verificação de todo o conteúdo enviado por cada um dos seus usuários.

À primeira vista, pode parecer que esta distinção só tenha alguma relevância do ponto de vista técnico. No entanto, um olhar mais atento poderá tornar evidente a enorme diferença que há entre o papel desempenhado por uma rede social e aquele que é feito por um serviço de hospedagem. Redes sociais trabalham para que um conteúdo possa alcançar o maior número possível de pessoas. Já as empresas de infraestrutura oferecem recursos para que o conteúdo tenha nada mais que o direito de existir e de ser acessado em algum ponto da internet. Enquanto um serviço permite que a informação possa ter existência no mundo virtual, o outro garante que ele possa ter algum nível de abrangência.

Exceto pelos casos de determinação judicial, não há bons motivos para pensar que um determinado conteúdo deveria ter sua existência negada a priori por aquelas empresas de infraestrutura que poderiam garanti-la. No caso da divulgação do conteúdo pelas redes sociais, a lógica é um pouco diferente; afinal, há um direito fundamental à livre expressão, mas não há lei nenhuma que garanta o direito à promoção das suas ideias.

No caso de um mercado realmente competitivo, a regra para as redes sociais poderia ser muito simples. Cada rede social que estabeleça os seus critérios e dispute o mercado com as outras plataformas dentro da lógica de livre mercado. Quem não estiver satisfeito com um produto, que troque por outro.

O problema é que a maior parte do tráfego da internet tem origem em um conjunto muito pequeno de portais, tais como Facebook, YouTube, Twitter e Google. Quando alguém é banido destas redes (e não raro isso acontece de forma simultânea), sua audiência acaba se restringindo apenas àquela fatia dos seguidores com um interesse muito grande pelo assunto. Como a maior parte das pessoas só visualiza a informação distribuída por algum destes gatekeepers, ser retirado destes pontos de distribuição acaba gerando um efeito muito parecido com a censura propriamente dita.

Na teoria, poderia fazer todo o sentido permitir que cada rede social tenha a liberdade de publicar o que quiser. No mundo real, este nível de liberdade não se traduz em nada além de permitir que um grupo de não mais que cinco empresas detenha o poder de decidir quais são as informações que o mundo deverá ver.

Grosso modo, a polêmica da regulação envolve as seguintes questões: o que deveria ser moderado, quem deve fazer a moderação, quando deve ser feita a moderação, onde (na pilha tecnológica) deve ser feita a moderação e por quais motivos ela deveria ser feita. Aqui, levantamos a questão da relação entre as empresas que se encontram em cada um dos pontos da pilha tecnológica e o respectivo nível de responsabilidade que faz sentido atribuir a cada uma delas, mas sem a pretensão de oferecer uma proposta geral para um problema desta complexidade.

Entretanto, a compreensão do que foi exposto acima nos leva a pensar em pelo menos um cenário em que não deveria haver nenhum tipo de moderação, que é o caso da filtragem de conteúdo feita no nível dos provedores de acesso e de infraestrutura. Afinal, uma filtragem de conteúdo neste ponto da rede produziria um efeito análogo ao de uma empresa de telefonia que resolvesse fazer o monitoramento das conversas telefônicas. Além do mais, o custo da tecnologia para a escuta e monitoramento da rede teria o efeito colateral de tirar do mercado as empresas que não têm uma grande capacidade de investimento.

É justo que a responsabilidade pela divulgação de conteúdos ligados ao terrorismo, como foi o caso do atentado de El Paso na comunidade 8Chan, seja atribuída a alguma das partes que fazem esta engrenagem da internet funcionar. Mas a clareza a respeito de quem deve ser responsável pelo quê poderá fazer com que a sociedade saiba de forma clara quem deve ser efetivamente responsabilizado, e que uma empresa cuja competência está na área de segurança da informação, como a Cloudflare, possa focar naquilo que ela realmente sabe fazer.

Rodrigo Fernandes, head of sales da VectorVue, no Canadá, é formado em Ciência da Computação pela UFMG.

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