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Espiando a lista dos meus pacientes de atendimento primário, fico imaginando quem será afetado: a grávida de Camarões? A senhorinha de ossos frágeis da República Dominicana? O homem com câncer do Equador? A proposta do governo Trump de negar o green card às pessoas que usam serviços como o de assistência alimentar e o Medicaid ameaça vários pacientes meus com uma escolha inconcebível: a saúde ou a situação perante a imigração.

Uma “carga pública” é alguém que os Estados Unidos consideram ter grandes chances de contar com o governo federal como fonte primária de subsistência. E o governo pode evitá-la ajustando o status do imigrante, elevando sua categoria de visto (como o de trabalho) ou tornando-o residente permanente legalizado (dono do green card). Ou seja, o incentivo do estrangeiro para evitar essa designação é bem forte.

Historicamente, são classificados como tal apenas aqueles que recebem assistência financeira de programas como a Assistência Temporária para Famílias Necessitadas, em quantias que representam mais da metade de sua renda pessoal. Entretanto, a nova regra proposta pelo Departamento de Segurança Nacional – que deveria ter sido publicada no Diário Oficial em 10 de outubro e aberta para um período de apreciação pública de 60 dias – amplia significativamente esse grupo.

Temos o dever moral de oferecer serviços básicos aos imigrantes

Se a nova norma for adotada, iniciativas cruciais para a saúde dos meus pacientes, incluindo o Medicaid, o Programa de Assistência Nutricional Suplementar (antes conhecido como cupons de alimentação), assistência moradia e o Medicare Part D (benefício que supre medicações), também contarão como designação da carga pública. Assim, a grávida camaronesa pode ter de decidir se tornar-se residente permanente é mais importante que oferecer ao filho não nascido os nutrientes necessários para que possa viver uma vida mais longa; a dominicana idosa pode ter de decidir se tornar-se residente permanente é mais importante que tomar o remédio que fortalecerá seus ossos e impedirá o trincamento de sua bacia.

E, mesmo que o meu paciente equatoriano decida pelo impensável, abdicando do Medicaid e da quimioterapia, deixando que o câncer lhe consuma o organismo lentamente, o governo federal pode identificar sua doença como razão para lhe negar o status de permanência – isso porque, com a nova regra, as próprias condições de saúde se tornarão fator de grande peso para a estipulação da designação.

Entre as razões dadas para a proposta de mudança, menciona-se um aumento na “autossuficiência”, com base na narrativa de que quem usa os tais programas se torna dependente do governo. Acontece que a ideia não só não tem base factual como prejudica os meus pacientes e suas famílias, pois as iniciativas assistenciais oferecem não só uma saída para os problemas de saúde como para a autonomia econômica.

Leia também: Os norte-americanos são melhores que suas leis (artigo de José Antonio Vargas, publicado em 17 de setembro de 2018)

João Pereira Coutinho: A política da decência (23 de junho de 2018)

Uma pesquisa publicada em 2012 concluiu que o acesso aos cupons alimentares durante a infância leva a uma redução significativa da obesidade, hipertensão e diabete na idade adulta. A assistência à moradia, através do Housing Choice Voucher, antes conhecido como “Seção 8”, torna os aluguéis acessíveis e ajuda um sem-fim de famílias a evitar a condição de rua, deixando os pais em uma posição melhor para garantir emprego fixo. Subsídios de baixa renda para o Medicare Part D tornam os remédios mais acessíveis, e estudos já mostraram que a redução no preço da medicação está associada à obediência ao tratamento e, consequentemente, à melhora da saúde. Ou seja, não é surpresa constatar que quem segue à risca as recomendações médicas falta menos ao trabalho e depende menos do recurso da incapacidade temporária. O próprio Medicaid está associado à redução da mortalidade, com uma estimativa recente calculando uma vida salva anualmente para cada grupo de 239 a 316 adultos que ganham o benefício.

Embora as benesses dessas iniciativas assistenciais públicas pareçam óbvias, mesmo que se rejeite essa pesquisa, temos o dever moral de oferecer serviços básicos aos imigrantes. Não podemos mascarar a verdade: a nova medida vai prejudicar os estrangeiros. Fisicamente. Como também infligirá dor a seus filhos, que são os que mais têm a perder se seus pais praticamente perderem o direito à assistência médica, a uma nutrição melhor e à assistência moradia. 25% das crianças deste país (19 milhões ao todo) têm pais imigrantes, sendo que quase 90% são cidadãs.

Mesmo que a regra não entre em vigor, o medo que gera só aumenta a calamidade. Em 18 estados, quase dois terços dos fornecedores oficiais do programa nutricional federal Mulheres, Bebês e Crianças já confirmaram o declínio no número de casos, às vezes até de 20%. Se o novo projeto for confirmado, 1 milhão de imigrantes deve sair do Medicaid.

As iniciativas assistenciais oferecem não só uma saída para os problemas de saúde como para a autonomia econômica

Resumindo: nenhum imigrante deveria abdicar dos programas públicos assistenciais, pelo menos até que se confirme a efetivação da norma, e ainda há muitos passos antes de se tornar realidade. E, mesmo se for efetivada, os estrangeiros ainda terão 12 míseros meses de direito ao Medicaid em um período de três anos antes de serem classificados como “carga pública”. Entretanto, o medo insuflado pelo presidente e confirmado por uma regulamentação brutal pode fazer com que muita gente como meus pacientes se esquive de aceitar a ajuda pública nas próximas décadas.

Durante os debates sobre a saúde pública de 2010, quem era contra a expansão da cobertura vivia falando que a reforma atrapalharia a relação médico-paciente. O que essas pessoas parecem não entender é que o meu relacionamento com meus pacientes está vinculado à possibilidade de terem ou não cobertura do Medicaid; minha possibilidade de receitar remédios para tratar os males dos idosos depende do Medicare Part D; meus conselhos sobre uma dieta saudável serão inúteis se a assistência nutricional for esvaziada.

Nosso governo não deveria torturar os imigrantes mais vulneráveis do país, forçando-os a escolher entre a cidadania ou a vida. Eles não têm de abrir mão da comida, do abrigo e da saúde para brigar pelo sonho americano.

Douglas Jacobs é médico residente do Brigham and Women’s Hospital e da Faculdade de Medicina de Harvard.
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