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| Foto: Josh Edelson/AFP

Em uma visita ao Williams College, não muito tempo atrás, encontrei um jovem que estudava física teorética e literatura comparada. A ciência era muito além do que poderia falar com ele, então pensei que poderia tentar algo em literatura. Fluente em japonês e em espanhol, ele estava seguindo uma tese que, se entendi bem, explorava os paralelos entre a literatura crioula do século 17 no México e a poesia waka japonesa no período dos Estados Combatentes. 

Estava imaginando a melhor forma de dissimular minha ignorância diante daquele prodígio, quando ele observou que uma das melhores coisas sobre Williams é que um dos seus curadores é peixe grande em um banco de Wall Street, e isso ajuda a obter financiamento a candidatos promissores de Williams. 

Houve um tempo em que um jovem com esses dons poderia hesitar quando contemplava os diferentes caminhos que ele poderia tomar na vida. Mas as elites educadas de hoje – graduados, em geral, do top 30 das universidades dos EUA – estão mais estritamente aplicados que seus predecessores em um punhado de carreiras, a maioria delas envolvendo finanças e tecnologia. 

Sem dúvida, parcialmente, isso acontece porque essas carreiras oferecem o melhor retorno sobre o capital para aqueles que pagaram valores extravagantes na sua formação. “A admissão às Ivies”, grupo formado por oito das universidades mais prestigiadas dos Estados Unidos, escreveu Steven Pinker de Harvard, “é cada vez mais visto como o gargalo do duto que abastece um pequeno número de jovens adultos nos setores lucrativos remanescentes de nossa economia monetizada em que o ‘vencedor leva tudo’.”

As elites educadas de hoje estão mais estreitamente aplicados que seus predecessores em um punhado de carreiras, a maioria delas envolvendo finanças e tecnologia

Embora o dinheiro por si mesmo não explique a força da afinidade que o talento demonstra por essa formas de ganhar a vida, a cada época a camada superior encontra sua justificação em um mito ou piedade particular. Pode ser a virtus dos patrícios romanos, com sua eficiência pública e devoção patriótica, ou a noblesse oblige dos barões medievais, com sua fidelidade para com aqueles que estavam unidos pela honra. Mas o que quer que seja, é uma obra de misticismo que pretende justificar, talvez santificar, a ascendência do grupo dominante. 

Quatro séculos atrás, Francis Bacon previu que o “conhecimento que nós possuímos agora não ensinará o homem nem mesmo o que desejar”. Quebre os algoritmos da natureza, acreditava Bacon, e os seres humanos poderiam se libertar através da tecnologia. Ele foi tão além que sugeriu que eles poderiam reparar o dano da Queda e restaurar o paraíso perdido.

As elites de hoje são servas de um Baconismo messiânico. Jeff Bezos, CEO da Amazon, fala do “início de uma Era de Ouro”. Mark Zuckerberg profetisa um novo mundo de significado e propósitos, a ser forjado por algoritmos ainda mais perspicazes. O trabalho enfadonho e desagradável será eliminado por robôs que tomarão conta das tarefas mais irritantes da vida. Do consequente embaraço dos ricos, cada cidadão usufruirá de uma renda garantida, paga pelo tesouro do estado. No lugar de trabalhos sem futuro, teremos não só novas comunidades virtuais, mas novas realidades sintéticas, para a qual nos voltaremos com alívio em relação à monotonia da nossa verdadeira. A própria mortalidade irá ceder à varinha do mago – ou então aos investidores na Calico (California Life Company) –, veremos. 

Traduzindo, isso significa que: o sonho que anima Silicon Valley e Wall Street – o mundo da ciência aplicada e do capital que o garante – é agora tão revolucionário em suas aspirações quanto os sonhos que inspiraram os filósofos do Iluminismo do século 18 e os iconoclastas maoistas e bolchevistas do século 20. A ação é esta: fornecer a música mais louca, o vinho mais forte, que uma vez foram propriedades das velhas crenças utópicas, e monopolizar os talentos da nação.

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O problema é que aconteceu que uma parte muito grande de nossa inteligência coletiva está submergida no serviço a um ideal particular (neste caso o Baconismo apocalíptico), e uma parte muito pequena sobrou para questionar as presunções daqueles que o sustentam e administram. Quem sobrou para sondar as fraquezas e diagnosticar as morbidades dessa visão dominante?

Voltando a 1825, quando William Hazlitt publicou seu relato dos formadores de opinião da elite de sua época, The Spirit of the Age, ele errou ao se concentrar muito estritamente nos poetas e intelectuais, sábios como Wordsworth e Coleridge, Benthtam e Malthus. Não houve um único empreendedor ou aventureiro comercial na sua lista, mesmo enquanto o espírito empreendedor da revolução industrial estava transformando a Inglaterra. 

Hoje, o caso é quase o inverso. Os grandes aventureiros comerciais “são” os sábios proeminentes. Warren Buffett goza de um status semioficial de profeta nacional e as frases de Steve Jobs figuram nas páginas dos anuários ao lado das de Gandhi e Thoreau. Agora, os realizadores são os sábios, e os poetas e os profetas que, alguma vez, poderiam ter questionado seus atos matutados obscuramente nas sombras. 

A intelectualidade de Hazlitt e Coleridge – uma combinação de mentes capaz de fazer frente aos técnicos e desafiar a sua arrogância altiva – está qualquer coisa menos morta. Até meados do século 20, a intelectualidade ainda podia dar frutos, e obteve muitas coisas erradas, mas também algumas poucas e importantes certas. Quando as elites educadas dos anos 1930 e 1940 beberam o veneno do socialismo messiânico, um grupo de intelectuais inspirados, educados liberalmente e versados nas tradições humanas da cultura, correram ao resgate. George Orwell, Arthur Koestler, Lionel Trilling, Whittaker Chambers, William F. Buckley Jr., entre outros, expuseram a ingenuidade pelagiana dos discípulos de Marx e Lenin. 

A casta intelectual em apodrecimento de hoje não ostenta nenhum homem ou mulher de letras da estatura de um John Ruskin 

Agora, enquanto nos confrontamos com um novo messianismo – a ambição de, nas palavras de Yuval Noah Harari, “evoluir os seres humanos em deuses” e “transformar o Homo sapiens em Homo deus” –, a intelectualidade é estupidamente impotente. Não há mais Burckleys ou Orwells para perturbar a complacência dos mais novos messianistas, seres dourados que, por toda sua devoção aos jogos de golfe, são, na sua própria opinião, tal qual corajosos Cortezes no pico de Darien, preceptores de um novo universo de possibilidades humanas. 

A intelectualidade se tornou tão encolhida e degradada que é incapaz de apontar essa loucura, ou assinalar eficazmente os perigos que surgem sempre que os homens com poder nas mãos colocam na cabeça que eles estão construindo o novo Céu e a nova Terra. A casta intelectual em apodrecimento de hoje não ostenta nenhum homem ou mulher de letras da estatura de um John Ruskin ou George Eliot, George Santayana ou Rebecca West: a profissão está obsoleta. Quanto aos acadêmicos generalistas, do qual Lionel Trilling fazia parte, também eles são raros nestes dias, e estão perto da extinção tanto quanto a prosa que eles escreviam, alegre e livre de jargões. 

O jornalismo, outro pilar da intelectualidade, está fatalmente enfraquecido. Como as vendas de anúncios caíram e as publicações competem por subsídios dos magnatas, escritores encontram-se despojados de sua dignidade independente; eles juntam-se às fileiras dos escritores celebrados, e naqueles indecorosos seraglios devem tomar cuidado para não ofenderem os instrumentos da destruição de sua criatividade.

Com essa decadência profissional veio uma perda de força moral. O que resta do antigo establishment intelectual teme a sua audiência e carece de fé em si mesmo. Ele sobrevive atendendo ao masoquismo das elites, dizendo-lhes, tal como escritores qual Ta-Nehisi Coates nunca cansam de fazer, o quanto elas são racistas e opressoras. Chicoteadas em agradáveis êxtases de remorso, os poderes ignoram o que está realmente errado com elas: o altruísmo distorcido que os lança como estrelas da redenção da humanidade.

No entanto enquanto a intelectualidade de hoje acalma seus senhores, pregando uma tolerância que ninguém – além da parte lunática – objeta, ela mesma é histericamente intolerante com os desafios às suas próprias devoções ortodoxas e partidárias. 

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establishment intelectual, que em seu auge ouviu Trilling e até mesmo, embora relutantemente, admitiu Bill Buckley como membro honorário, perdeu a coragem. É difícil imaginar essa sobra desmoralizada assimilar um renegado como Buckley, um provocador que preferiria ter sido governado pelos primeiros 100 nomes da lista telefônica do que a faculdade de Harvard. Ainda assim, Buckley era tão receptivo à velha intelectualidade que poderia continuar amizades com tais eminências intelectuais como Norman Mailer e John Kenneth Galbraith, e podia ver seus escritos impressos em revistas que francamente repudiava sua visão política.

Decisões grandiosas serão tomadas nos próximos anos, e feitas por uma elite que, por toda a sua absorção chilástica na grandeza futura, está muito estritamente absorta em sua própria e estreita técnica para ser confiável a fazer os julgamentos por conta própria.

Ao mesmo tempo, uma proporção ainda maior de talentos evitará as vocações intelectuais decadentes e abraçará as ortodoxias futuristas. Aqueles com o dom de questionar o poder enlouquecido, irão, em vez disso, servir com mansidão ao que pode ser uma insanidade. 

Essa capitulação só vai exacerbar o encolhimento humano que aparece sempre que, como Trilling chamava, um “desgosto [da elite] pela humanidade como ela é” é superado apenas por sua “perfeita fé na humanidade como ela deveria ser”. 

Nota: Este é o primeiro de dois artigos. O segundo examinará como o admirável mundo novo pregado pelas elites de hoje empobrece o presente e desfigura a alma.

Michael Knox Beran é advogado e autor de “Pathology of the Elites” e “Murder by Candlelight”. Traduzido por Rafael Salvi.
© 2018 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês.
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