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A Gazeta do Povo dedicou editorial recente, publicado na edição impressa de 1.º de dezembro e em seu site na segunda-feira, dia 3, à proposta defendida pelo Movimento Escola sem Partido (ESP) para coibir o uso do sistema educacional para fins de propaganda ideológica, política e partidária. Ao criticá-la, porém, acabou incorrendo na conhecida falácia do espantalho.

Depois de fazer três importantes concessões ao ESP ‒ reconhecer que a doutrinação nas escolas e universidades é um fato notório; que algo precisa ser feito contra esses abusos; e que vários dos deveres do professor, previstos na proposta, “fazem muito sentido”, pois seria “absurdo que professores privilegiassem alunos por causa de suas convicções políticas ou morais”, promovessem “a cooptação ou a propaganda político-partidária em sala de aula” ou desrespeitassem as convicções morais dos pais dos estudantes ‒, o editorial aponta o “calcanhar de Aquiles do projeto”: a regra segundo a qual o professor, “ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito da matéria”.

“A própria formulação do texto” ‒ diz o jornal ‒ “exige a apresentação de ‘versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes’: versões falsas, opiniões absurdas, teorias sem o menor compromisso com a realidade, todas elas acabam contempladas pelo projeto, com a agravante de que o professor também não poderá emitir seu juízo de valor sobre as mentiras que será obrigado a apresentar a contragosto, para que não se considere que ele está agindo para impor uma visão, ainda que esta visão seja cristalinamente verdadeira”.

O projeto não impede o professor de dizer o que pensa sobre controvérsias que fazem parte da sua disciplina

Eis o espantalho. Há dois erros gigantescos nesse parágrafo e que poderiam ter sido evitados por uma leitura mais cuidadosa da norma, sem falar no princípio hermenêutico que orienta a descartar interpretações que conduzam a resultados absurdos.

Primeiro: a proposta do ESP não impõe ao professor o dever de apresentar aos alunos todas as versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito das questões controvertidas abordadas em sala de aula ‒ o que seria um disparate. O que ela exige ‒ pois a própria Constituição o exige, ao assegurar aos estudantes o direito à educação, ao pluralismo de ideias e à liberdade de aprender ‒ é a apresentação das principais versões, teorias, opiniões e perspectivas sobre determinada controvérsia. Trata-se, aqui, a toda evidência, dos pontos de vista academicamente relevantes, que desfrutam de prestígio no meio científico e são avalizados pela bibliografia de referência sobre o assunto.

Além disso, o projeto não impede o professor de dizer o que pensa sobre controvérsias que fazem parte da sua disciplina. Se impedisse, seria inconstitucional. A liberdade de ensinar garante ao professor o direito de manifestar seus pontos de vista, mas não o de tentar impô-los aos alunos, omitindo ou distorcendo opiniões academicamente relevantes que não desfrutam da sua simpatia.

Diversamente do que se lê no editorial, a proposta do ESP não pretende uma “neutralidade absoluta”. A neutralidade exigida pela proposta é a que decorre dos princípios constitucionais da impessoalidade e laicidade, que impedem o professor de usar a sala de aula para promover suas próprias preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias. A neutralidade nas ciências, à qual o projeto não faz menção, é um ideal que se confunde com a busca da verdade; e o pluralismo de ideias é o meio constitucionalmente previsto de empreender essa busca, não um fim em si mesmo. O pluralismo está para o ideal de neutralidade na ciência, assim como o contraditório está para o ideal de imparcialidade na justiça. São princípios instrumentais. Ao apresentar os principais pontos de vista sobre uma questão controvertida, o professor contribui para elevar o conhecimento dos alunos a um novo patamar, ajudando-os a perceber a complexidade do mundo, e a não se deixar levar pelo canto de sereia das ideologias. Como se vê, não admira que os partidos e organizações de esquerda ‒ que são os grandes receptadores dos furtos ideológicos praticados diariamente nas escolas e universidades ‒ estejam apavorados com o avanço do ESP.

Leia também: O Escola sem Partido e a doutrinação no ensino (editorial de 2 de dezembro de 2018)

Leia também: Distintas visões (artigo de Ricardo da Costa, publicado em 4 de dezembro de 2018)

O editorial especula sobre o risco de judicialização dos conflitos que adviriam da aprovação do projeto. Esse risco de fato existe, mas não decorre do projeto ‒ que apenas expressa em linguagem mais acessível o que já está na Constituição, sem criar nenhum novo direito ou obrigação para ninguém ‒ e, sim, da disseminação de conhecimento sobre a ilicitude da doutrinação. Portanto, para evitar a temida judicialização, a solução não seria rejeitar a proposta do ESP, mas manter as vítimas da doutrinação em estado de completa ignorância quanto aos direitos que lhes são garantidos pela Carta Magna: no caso dos alunos, o direito à educação, ao pluralismo, à liberdade de aprender, à impessoalidade, à laicidade, à liberdade de consciência e de crença, à intimidade e à proteção integral; no caso dos pais, o direito à educação religiosa e moral dos seus filhos. É isso o que defende o editorial? Parece que sim.

Embora identifique como positivo o fato de os pais procurarem as coordenadorias e diretorias quando identificam práticas doutrinárias por parte dos professores ‒ o que pressupõe algum nível de consciência sobre a ilicitude dessas práticas ‒, o jornal reitera sua posição contrária à proposta do ESP, que outro objetivo não tem senão o de informar estudantes, professores e pais sobre o significado e o alcance de direitos e deveres que já existem.

O editorial se equivoca, por fim, ao sugerir que a aprovação do projeto possa transferir a políticos e burocratas o protagonismo da sociedade no combate à doutrinação. Na verdade, antes mesmo de ser aprovada, a proposta do ESP já vem despertando e mobilizando amplos setores da sociedade contra essas práticas covardes, antiéticas e ilícitas que tanto mal vêm causando aos estudantes, às famílias e à democracia brasileira.

Miguel Nagib é advogado e fundador do Escola sem Partido.
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