• Carregando...
 | Fotograaf Onbekend/Anefo/Wikimedia Commons
| Foto: Fotograaf Onbekend/Anefo/Wikimedia Commons

Quando a União Soviética entrou em colapso, em 1991, os analistas tentaram explicar seu fracasso de várias formas – econômica, política, militar –, mas poucos pensaram em incluir outra causa, bem mais sutil, isto é, a perda total de credibilidade do regime.

Esse processo, ainda que de difícil mensuração, começou em 1956, quando o premiê Nikita Kruschev fez o chamado “Discurso Secreto” aos líderes do partido, no qual denunciava os crimes de Josef Stálin e oficialmente revelava a existência do sistema prisional dos gulags. Pouco depois, Boris Pasternak permitiu que seu romance Doutor Jivago, até então censurado, fosse publicado no Ocidente, abrindo outro buraco na Cortina de Ferro. Então, em 1962, a revista literária Novy Mir causou sensação com uma novela que se passava em um gulag, de um autor desconhecido chamado Alexander Isayevich Soljenítsin.

A novela, Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, tomou primeiro o país, depois o mundo, de roldão. Em uma prosa clara, quase límpida, descrevia a rotina de um homem simples em um campo de trabalhos forçados, onde estoicamente suportava um sem-fim de injustiças. Foi considerado tão incendiário que, quando foi publicado, muitos leitores soviéticos acharam que a censura governamental tinha sido abolida.

Soljenítsin não era nenhuma jovem revelação; nascido há 100 anos, em 11 de dezembro de 1918, pouco mais de um ano após a Revolução Bolchevique, ele era, virtualmente, da mesma idade que o Estado soviético e viveu cada uma das fases de seu desenvolvimento. Como jovem universitário, foi tomado pela euforia revolucionária do experimento comunista e acreditava piamente nas premissas do marxismo-leninismo. Na Segunda Guerra Mundial, serviu como comandante de um batalhão de artilharia e recebeu duas medalhas por sua coragem.

A novela, Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, tomou primeiro o país, depois o mundo

Entretanto, a carreira promissora de Soljenítsin foi brutalmente interrompida por sua prisão, em fevereiro de 1945, sob a acusação de atividades antissoviéticas, e foi rapidamente condenado a oito anos em um gulag. Seu crime? Criticar Stálin e o Exército Soviético em cartas trocadas com um amigo de escola que estava em outra frente.

Essa guinada de ares dickensianos mergulhou Soljenítsin no desespero, mas também abriu seus olhos para o lado mais negro do comunismo soviético, permitindo-lhe acesso ao reinado de terror e mentira que durava tanto tempo. Já tinha escrito poemas, histórias e metade de um romance, quase todos com temas patrióticos; a partir dali, então, decidiu dedicar o resto de sua carreira literária a expor a máquina monstruosa que, como mais tarde descobriu, assassinara ou aprisionara milhões de pessoas como ele mesmo.

Após publicar mais duas histórias centradas na luta da gente simples do campo, Soljenítsin entrou para a lista negra da censura, mas conseguiu completar os dois romances autobiográficos a que vinha se dedicando na época: O Primeiro Círculo, sobre um grupo de presos privilegiados, incluindo a si mesmo, escolhidos para o trabalho em um laboratório secreto, administrado pelas autoridades do gulag, e Pavilhão de Cancerosos, que descrevia as circunstâncias em que, atuando como professor em exílio administrativo após sua soltura, foi tratado, com sucesso, de um câncer abdominal em Tashkent.

A ambas as obras, notáveis pelo escrutínio ético da sociedade soviética e a abordagem dos crimes do governo, foi negada a publicação na URSS. Como aconteceu com Doutor Jivago, rapidamente foram contrabandeadas para o Ocidente – e, também como o clássico Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, tornaram-se best-sellers instantâneos.

Rodrigo Constantino: Churchill e Orwell: a luta pela liberdade (publicado em 22 de maio de 2018)

Leia também: Vale a pena ter uma vida intelectual? (artigo de Mário Chainho, publicado em 14 de outubro de 2016)

Devido à sua visão crítica da vida soviética, Soljenítsin foi expulso do Sindicato de Escritores, que era estatal, e se tornou um fora da lei virtual no próprio país. Entretanto, não estava sozinho; pelo contrário. Muitos escritores talentosos e independentes – Varlam Shalamov (que também era cronista da vida no gulag), Andrei Sinyavsky, Yuli Daniel e Joseph Brodsky – conseguiam driblar a censura com um novo formato de publicação chamado “samizdat”, que consistia em poemas, histórias, contos, apelos de direitos humanos e manifestos políticos autopublicados, que circulavam secretamente em cópias datilografadas e mimeografadas. Em muitos casos, as obras também eram enviadas ao exterior.

No fim da década de 60, os principais escritores e ativistas passaram a ser conhecidos como o Movimento Dissidente, cujo objetivo era instaurar a liberdade de expressão e as mudanças políticas pacíficas na União Soviética, ao mesmo tempo que conquistavam um público mundial de leitores. Além de escritores, o grupo incluía cientistas, engenheiros, acadêmicos, advogados e até operários rebeldes; seu líder extraoficial era o físico Andrei Sakharov, vencedor do Prêmio Nobel.

Soljenítsin simpatizava com Sakharov e cooperou com ele e outros dissidentes, ainda que nem sempre concordasse com eles, preferindo continuar a trilhar o próprio caminho. Em 1973, ainda na União Soviética, mandou para o exterior sua obra-prima literária, o polêmico Arquipélago Gulag, relato não ficcional no qual expunha os crimes medonhos que levaram ao aprisionamento e morte de milhões de vítimas inocentes, provando que suas dimensões o colocavam no mesmo nível do Holocausto. A atitude de Soljenítsin representou um desafio explícito ao Estado soviético, questionando sua legitimidade e exigindo mudanças revolucionárias.

Diante disso, os soviéticos revogaram sua cidadania e o expulsaram para o Ocidente; acabou indo para os Estados Unidos, passando a maior parte dos 19 anos seguintes em Vermont. Ali, pôde receber o Prêmio Nobel que ganhou em 1970 e escrever mais quatro romances históricos da grandiosa série A Roda Vermelha, inspirada na Revolução Russa e suas consequências.

Devido à sua visão crítica da vida soviética, Soljenítsin foi expulso do Sindicato de Escritores, que era estatal, e se tornou um fora da lei virtual no próprio país

Ele continuou a criticar a corrupção da liderança soviética, oferecendo inúmeros conselhos para o futuro, mas, no geral, não foi um período muito feliz para o escritor: seus ataques verbais passaram a ter menos peso na União Soviética do que quando vivia ali. Além disso, seus ataques virulentos à América e à democracia ocidental logo afastaram seus defensores liberais no Ocidente, ao mesmo tempo que as críticas ferozes a antigos aliados em seus livros de memórias prejudicaram sua reputação na terra natal.

Nada disso diminuiu o desejo de Soljenítsin de ver o fim do sistema soviético – e, quando o governo de Mikhail Gorbachev entrou em colapso, em 1991, gozando das benesses do sucesso, teve a satisfação de ver suas previsões do desastre se concretizarem. Três anos depois, voltou para a Rússia, onde foi recebido como herói, mas não gostou muito do que viu ali. O governo do presidente Boris Yeltsin era caótico, e Soljenítsin não aprovou o que viu como “adulação” pura do novo regime em relação ao Ocidente, e seu desejo tolo de introduzir uma forma de democracia ocidentalizada. Defendia um líder forte, que mantivesse uma ordem rígida no país, encorajando e apoiando a Igreja Ortodoxa, além de um patriotismo revigorado e o retorno aos valores tradicionais.

A impressão, em 2000, foi a de que concretizaria seu desejo, quando Yeltsin entregou o poder a um homem que tinha a mesma ideologia nacionalista que Soljenítsin, e personificava seu ideal de líder forte: Vladimir Putin. O novo presidente fez questão de recebê-lo em sua casa e lhe pedir conselhos para, em 2007, oferecer-lhe um prêmio por suas atividades humanitárias (o escritor já tinha recusado honrarias semelhantes de Gorbachev e Yeltsin).

Leia também: Intelectuais versus sabedoria (artigo de Carlos Adriano Ferraz, publicado em 28 de junho de 2018)

Leia também: O futuro que não chegou (artigo de José Pio Martins, publicado em 30 de outubro de 2018)

Soljenítsin morreu em 2008, antes que Putin mostrasse suas garras, assassinando a sangue-frio membros da oposição, criando um Estado autoritário, invadindo a Ucrânia e a Crimeia, e estrangulando a democracia local nas províncias (talvez tivesse aprovado as medidas ucranianas, já que era metade ucraniano de nascimento, mas não as outras).

Recebeu um funeral suntuoso e foi enterrado no Monastério Donskoy, em Moscou. Em 2010, Arquipélago Gulag se tornou leitura obrigatória nas escolas russas. A Great Communist Street, em Moscou, ganhou seu nome, e o centenário de seu nascimento está sendo comemorado esta semana com grande pompa em toda a Rússia, com planos de inauguração de uma estátua sua, em um futuro próximo, na capital.

Tudo isso certamente deixaria o autor muito satisfeito, mas, ainda que celebrado e explorado por aliados questionáveis, Soljenítsin deve ser lembrado por falar a verdade. Arriscou tudo o que era e tinha para plantar uma estaca no coração do comunismo soviético, e fez mais que qualquer ser humano para abalar sua credibilidade e subjugar o Estado soviético.

Michael Scammell é autor de “Solzhenitsyn: A Biography” e “Koestler: The Literary and Political Odyssey of a Twentieth Century Skeptic”.
The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]