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O interesse social pelos assuntos militares
| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Em nosso país, a preocupação dos pesquisadores da área de ciências sociais e humanas para com os assuntos militares é muito reduzida. Observe-se que, dentre as múltiplas centenas de unidades de ensino superior em funcionamento, apenas algumas delas se mostram interessadas em tais assuntos. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) há o Núcleo de Estudos Estratégicos; na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) funciona o Núcleo de Defesa e Segurança; a Universidade Federal Fluminense (UFF) tem o Instituto de Estudos Estratégicos; e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) encontra-se em andamento um programa de mestrado e doutorado em Segurança e Defesa Internacional.

Um avanço importante emergiu com a criação do Programa de Apoio ao Ensino e a Pesquisa Científica e Tecnológica em Defesa Nacional, o alcunhado Pró-defesa. Ele envolve o intercâmbio entre instituições civis e militares com vistas a implementar projetos direcionados ao ensino, à pesquisa e à formação de recursos humanos para a área da defesa nacional. Tal programa é decorrência de uma parceria entre a Coordenação e Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes) e o Ministério da Defesa. Embora seja uma proposta relevante, ela se mostra bastante acanhada porquanto os recursos financeiros disponíveis são bem limitados.

Causa muita preocupação e desalento constatar a existência desta conduta de ínfima atenção manifestada pelos estabelecimentos universitários em relação aos temas que abrangem as Forças Armadas examinados pelos pesquisadores do assunto. Esta constatação vale também para as principais emissoras de televisão, bem como jornais importantes do país, que não costumam entrevistar especialistas que os estudam e nem promover debates relativos a eles.

Quanto aos jornais, frequentemente, eles exibem textos sobre questões relacionadas à área militar; no entanto, na quase totalidade das vezes, seus autores são jornalistas que de modo rotineiro os divulgam nos cadernos que os compõem. Ressalte-se que os mesmos se mostram muito competentes neste mister. Assim sendo, fortuitamente aparece um artigo redigido por um especialista do assunto. Note-se que estes profissionais da imprensa são muito hábeis em divulgar informações sobre fatos ocorridos, porém são raríssimos aqueles que realizam análises aprofundadas, fazem interpretações baseadas em teorias, apontam implicações e consequências e apresentam soluções e sugestões viáveis, o que costuma ser feito pelos pesquisadores do tema. Observe-se também que estes jornais não se inclinam a adotar a prática de expor debates entre dois articulistas que estudam questões relacionadas às Forças Armadas. Destaque-se ainda a inexistência de manifestações escritas por parte de qualquer ombudsman sobre esta escassez de artigos e esta ausência de debates.

Algumas ocorrências bastante conhecidas deveriam ser consideradas suficientes e determinantes para uma mudança de postura das instituições de ensino superior e dos meios de comunicação, tendo em vista a prestação de um valioso auxílio ao processo em andamento de ajuste do perfil dos estabelecimentos castrenses às exigências do regime democrático.

A mais importante delas foram as constantes intervenções militares na esfera política iniciadas no momento da Proclamação da República e encerradas na década de 80 do século passado, após 20 anos de governança autoritária. É sabido por muitos o quanto estas ingerências resultantes da crônica e recorrente incapacidade dos setores dominantes da sociedade em alcançar a hegemonia, a qual permanece intacta até os dias que correm, prejudicou a instauração e o enraizamento do regime democrático. Cabe observar, entretanto, que apesar dessas execráveis ocorrências não pode ser olvidado o importante papel desempenhado pelos servidores fardados no processo de integração nacional, principalmente por meio de ações cívico-sociais durante todo esse tempo, e que permanece até os dias atuais.

Essas constantes intervenções, que podem ser consideradas como um exercício do poder moderador juntamente com os recorrentes processos de socialização e de educação formal, moldaram e continuam moldando a personalidade dos militares no interior da caserna, os quais possuem a capacidade de produzir efeitos inadequados tais como o sentimento de superioridade e a postura de defesa da autonomia das Forças Armadas. Tais efeitos, já manifestados no decorrer de nossa história e aceitos pelos paisanos sem quase nenhuma reação contestatória, adentraram para a esfera da normalidade da vida social. É preciso tornar claro se esta socialização e educação formal realizadas na caserna, que é uma típica instituição total, se mostram compatíveis com a vigência do regime democrático.

Outros acontecimentos relevantes também precisam ser levados em conta. Tal é o caso da mudança substancial ocorrida no pensamento estratégico internacional. Com efeito, na década de 90 do século passado, durante a denominada Cúpula de Roma, diversos chefes de governo decidiram que a concepção estratégica dominante até então, isto é, a da resposta flexível, necessitava ser abandonada. Em seu lugar precisava entrar outra, baseada em uma enfática cooperação militar e em Forças Armadas singulares dotadas de contingentes menores, mais flexíveis e de maior mobilidade, bem como estruturadas de forma multinacional. Tal concepção, segundo eles, valeria integralmente para todos os países da América Latina, incluindo o Brasil. A colocação desta inferência exige a feitura de um questionamento quanto às implicações e às consequências decorrentes de sua plena assunção como política de Estado em nosso país, e não cabe apenas aos militares tomar iniciativas e decisões a esse respeito.

Esta nova concepção estratégica alterou profundamente o papel das Forças Armadas. Sob o comando da Organização das Nações Unidas, da qual o Brasil faz parte, elas passaram a ter por tarefa essencial, quando não exclusiva, tentar garantir a estabilidade em um mundo que caminha rumo a direções incertas carregadas de conflagrações regionais. Como pode ser notado, ocorreu uma mudança radical: os militares deixaram em segundo plano a atividade guerreira e assumiram o papel de guardiões da paz. Este novo papel está exigindo deles o cumprimento de novas tarefas, tais como a de comunicadores no decorrer de seu contato com populações e autoridades locais em diversas regiões do mundo; a de diplomatas, que exige a competência para utilizar as práticas políticas de mediação e negociação com populações, autoridades civis, líderes de facções em confronto, jornalistas e outros setores da sociedade civil; e, consequentemente, a de juízes frente a necessidade de oferecer respostas às contendas grupais emergentes. Esta surpreendente ocorrência exige o exercício da tarefa de reflexão sobre a conveniência e a validade de se manter uma organização militar voltada prioritariamente para o apaziguamento dos conflitos de baixa intensidade que pipocam no mundo.

Constata-se ainda outra ocorrência substantiva que diz respeito ao processo de civilianização das Forças Armadas em todo o mundo, ou seja, o paulatino aumento da presença de civis em seu âmbito e o progressivo avanço de concepções civis em sua organização e funcionamento. Essencialmente, tal processo caminha no sentido de eliminar progressivamente todas as diferenças entre a instituição militar e a sociedade civil. Ele agrega a incorporação de mulheres e indivíduos possuidores de orientações sexuais diversificadas em decorrência dos direitos democráticos, a contratação temporária de servidores fardados, o emprego crescente de paisanos nas atividades administrativas, sua presença nos combates atuais, a utilização de modelos de gestão usados nas empresas, a sindicalização dos militares, a sua liberdade de expressão (inclusive política) e a constituição de Forças Armadas privadas. Nesta época em que ocorre um claro e crescente processo de civilianização em todos os recantos do planeta, em nosso país continua avançando o processo de militarização no núcleo central do governo e na área do ensino público, por meio das escolas cívico-militares.

Observe-se que a presença de alguns militares em postos principais do Estado não deve causar estranheza em regimes democráticos, mas no nosso caso este número já é bastante elevado. Note-se também que o governante atual, um militar da reserva, apesar de ter sido eleito democraticamente, não mostra apreço algum pela democracia e se cerca de um grupo de servidores fardados majoritariamente oriundos da força hegemônica que no passado exerceu a função de protagonista nas múltiplas ingerências políticas. A crença vigente de que os militares abandonaram totalmente qualquer ideia intervencionista não deve servir de motivo para encerrar os estudos sobre este tema, pois ele ainda não foi esgotado.

Quanto às escolas cívico-militares, elas são rejeitadas pela comunidade acadêmica principalmente porque apresentam diversas ilegalidades e não podem ser universalizadas na forma de política pública. Ademais, o principal objetivo não declarado das mesmas é o de disciplinar os alunos para garantir a pacificação do ambiente escolar e, consequentemente, possibilitar o andamento do processo de aprendizagem. Os recursos empregados pelos militares são as recompensas e punições e a prática da ordem unida. Vale observar que o uso de punições não convém nem aos militares, porque podem provocar sentimentos de medo e apatia que não são adequados ao perfil de um soldado. No que diz respeito à ordem unida, sabe-se que a mesma tem por finalidade garantir o acatamento e a subordinação. Os aplicadores da ordem unida acreditam que a repetição de ordens claras e bem conhecidas seguidas de uma execução rápida, precisa e de modo maquinal asseguram o estabelecimento do reflexo da obediência. Destaque-se que a ordem unida tem servido apenas para manter o secular perfil do militar e preservar as tradições castrenses. Ela teve um papel muito importante nas guerras de primeira, segunda e terceira gerações, mas nos dias que correm tornou-se dispensável porque as de última geração objetivam tão somente paralisar as atividades rotineiras de um determinado país.

Observe-se que estas múltiplas e intricadas colocações aqui expostas revelam que todos os temas relacionados às Forças Armadas são por demais relevantes para a vida comunitária em qualquer parte do mundo, particularmente em nosso país, dado que seu direcionamento histórico sempre esteve atrelado a elas. Portanto, eles não podem continuar relegados ao segundo plano, precisam urgentemente receber a atenção que merecem tanto por parte dos vários meios de comunicação quanto das múltiplas instituições universitárias que têm por obrigação realizar pesquisas em todas as áreas do conhecimento humano.

Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutor em Educação e autor de Democracia e Ensino Militar e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania.

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