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“Nem o caçador consegue matar o pássaro que voa em sua direção em busca de refúgio.” Essa máxima samurai inspirou um homem corajoso e talentoso a salvar milhares de pessoas, desafiando seu governo e ao custo de sua carreira. Em 12 de outubro vim a Nagoya, a convite do governo japonês, para falar em honra de sua memória.

A atitude assombrosa de Chiune Sugihara levanta novamente algumas questões: do que é feito um herói moral? Por que alguém opta por salvar aquelas pessoas para as quais os outros viraram as costas?

Pesquisas sobre aqueles que resgataram os judeus durante o Holocausto mostram que muitos exibiam um traço de independência desde bem cedo. Sugihara era anticonvencional em uma sociedade conhecida pela valorização do conformismo. Seu pai insistiu para que o filho, ótimo aluno, se tornasse médico, mas Sugihara queria estudar línguas, viajar e imergir na literatura. Forçado a prestar o exame para a faculdade de medicina, deixou a prova em branco. Mostrou a mesma determinação quando entrou para o corpo diplomático e, como vice-ministro do Departamento de Relações Exteriores do Japão na Manchúria, em 1934, pediu demissão em protesto ao tratamento dispensado pelos japoneses aos chineses.

Uma segunda característica desses heróis e heroínas, como escreve o psicólogo Philip Zimbardo, é que “as mesmas situações que estimulam a imaginação hostil de algumas pessoas, transformando-as em vilãs, podem também instilar a inspiração heroica em outras, estimulando-as a tomar atitudes arrojadas”. Embora o mundo à volta de Sugihara não se importasse com a condição dos judeus, ele foi incapaz de ignorar seu desespero.

Embora o mundo à volta de Sugihara não se importasse com a condição dos judeus, ele foi incapaz de ignorar seu desespero

Em 1939, Sugihara foi enviado à Lituânia como responsável pelo consulado; ali, não demorou a se deparar com os judeus fugidos da Polônia, já ocupada pelos alemães.

Três vezes entrou em contato com a embaixada, pedindo permissão para emitir vistos para os refugiados. O telegrama de K. Tanaka, do Ministério das Relações Exteriores, dizia: “Em relação aos pedidos anteriores de visto em trânsito ‘vírgula’ o conselho é não emitir nada sob hipótese alguma para os viajantes que não tenham data de saída garantida ‘ponto’ sem exceções ‘ponto’ não esperamos outras dúvidas ou comentários a respeito ‘ponto’.”

Sugihara comentou a recusa com a mulher, Yukiko, e os filhos, e decidiu desafiar o próprio governo, apesar do dano inevitável que causaria à sua carreira.

Zimbardo chama a capacidade de agir de forma diferente de “imaginação heroica”, o foco no dever de ajudar a proteger os outros. Essa é uma habilidade excepcional, mas aqueles que a possuem quase sempre são subestimados. Anos após o fim da guerra, Sugihara falou de sua atitude como algo natural: “Havia milhares de pessoas paradas às janelas de nossa casa. Não havia outra saída”, revelou em uma entrevista em 1977.

Em 12 de outubro eu falei para a plateia na antiga escola de Sugihara, em Nagoya, durante de inauguração de uma estátua de bronze de sua imagem entregando vistos a uma família de refugiados. Após a cerimônia, perante cera de 1.200 alunos, conversei com o único filho dele ainda vivo, Nobuki, que saiu da Bélgica para a homenagem ao pai. E me disse que Sugihara era um homem muito simples. “Era gentil, adorava ler, mexer com plantas e, acima de tudo, crianças. Nunca achou que o que fez foi notável ou fora do comum.”

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Grande parte do mundo viu hordas de estrangeiros desesperados; Sugihara enxergou seres humanos e sabia que poderia salvá-los com uma ação prosaica, mas essencial. “Foi mesmo na base da caligrafia”, disse ele.

Ele então passou a emitir vistos dia e noite. Durante um único dia, liberava um número de documentos equivalente ao que normalmente sairia em um mês. A mulher, Yukiko, massageava suas mãos à noite, doloridas pelo esforço constante. Quando o Japão finalmente fechou a embaixada, em setembro de 1940, ele levou o papel timbrado consigo e continuou a tarefa – que já não tinha mais embasamento legal, mas funcionava graças ao selo oficial e seu nome. Pelo menos seis mil vistos foram emitidos para que as pessoas pudessem viajar do Japão para outros destinos; em muitos casos, a família inteira viajava com um único documento. Calcula-se que mais de 40 mil pessoas estão vivas hoje por causa de um único homem.

Com o consulado fechado, Sugihara teve de ir embora – mas não sem antes dar o carimbo oficial a um refugiado, para que forjasse mais vistos, e literalmente jogar os documentos pela janela do trem, para os estrangeiros que estavam na plataforma.

Depois da guerra, Sugihara foi demitido do cargo. Ele e a mulher perderam um filho de sete anos e ele passou a fazer trabalhos esporádicos. Foi só em 1968, quando Yehoshua Nishri o encontrou, é que sua contribuição foi reconhecida. O sobrevivente era um adolescente polonês salvo por um dos vistos do diplomata e, na época do encontro, estava na embaixada israelense em Tóquio.

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Até então, Sugihara jamais falara sobre suas atividades dos tempos de guerra; muita gente bem próxima a ele, inclusive, não tinha ideia de que fosse um herói.

Sugihara morreu em 1986. Nove anos antes, concedeu uma entrevista, e contou por que fez o que fez: “Disse ao Ministério de Relações Exteriores que era uma questão de humanidade. Não me importei de perder o emprego. Qualquer outro no meu lugar teria feito a mesma coisa.”

É claro que muitos estiveram em seu lugar, mas pouquíssimos agiram da mesma forma. A coragem moral é rara, e esse tipo de grandeza, mais ainda, pois exige uma combinação potente e misteriosa de empatia, força de vontade e uma profunda convicção que as normas sociais não conseguem abalar.

Como será que Sugihara reagiria à crise de refugiados que enfrentamos hoje, e à resposta de tantos líderes, simplesmente impedindo-os de entrar em seus países? Não há uma solução simples e adequada à enormidade da situação, mas temos que manter diante de nós a imagem de um único homem, sobrecarregado, isolado e bombardeado de todos os lados, que se recusou a fechar os olhos para o caos que se desenrolava do lado de fora de sua janela. Ele compreendeu as obrigações comuns a todos nós e ouviu nos apelos de uma língua estranha a linguagem universal da dor.

Em 12 de outubro, eu disse aos alunos que, um dia, na vida de cada um deles, haveria um momento em que teriam de decidir entre fechar a porta ou abrir o coração. E implorei para que, quando esse dia chegasse, eles se lembrassem de que estudaram na mesma escola que um grande homem que acolheu os pássaros que voaram em sua direção, pedindo ajuda.

David Wolpe é o rabino do Templo Sinai em Los Angeles e autor de “David: The Divided Heart”.
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