• Carregando...
 | /Pixabay
| Foto: /Pixabay

Nunca vou me esquecer do carinho e do apoio com que fui recebido no momento em que cheguei aqui, na Austrália, em 12 de fevereiro, depois de passar 76 dias detido na Tailândia. Graças ao empenho internacional, pude recuperar a liberdade. Agora estou em casa com minha mulher e, por isso, agradeço imensamente a todos que tiveram alguma participação no meu retorno seguro.

O que me ajudou a seguir adiante durante esse tempo sombrio? Saber que o mundo inteiro estava testemunhando uma injustiça. Milhões de pessoas me viram descalço e agrilhoado em uma audiência em Bangkok, não porque tivesse cometido algum crime – o que não foi o caso –, mas porque, imagino, a família real tailandesa tem uma relação estreita com os Khalifa, a família que controla Bahrein, país onde nasci e que representei jogando em sua seleção nacional de futebol.

Ter de usar algemas foi humilhante. Não sou criminoso, embora tenha sido julgado à revelia com base em incriminações amplamente consideradas falsas, pelas quais fui condenado a dez anos de cadeia – incluindo a acusação absurda de que eu teria participado do incêndio de uma delegacia no momento em que jogava uma partida que, aliás, foi televisionada. Cada vez mais acredito que meu único “crime” foi irritar a família real barenita ao chamar a atenção para a incapacidade do xeque Salman bin Ibrahim al-Khalifa, presidente da Confederação Asiática de Futebol, de proteger os atletas, e denunciar seu suposto envolvimento com a prisão e tortura deles após as manifestações pró-democracia realizadas no país em 2011.

O Bahrein só tem uma cela a me oferecer, enquanto a Austrália se transformou em meu lar, onde tenho o apoio do povo e do governo

Fugi de Bahrein em 2014, depois de tomar conhecimento das acusações contra mim, e me tornei residente na Austrália, onde fui reconhecido como refugiado em 2017. Sentindo-me mais seguro, muitas vezes cheguei a me esquecer de que ainda estava sendo incriminado injustamente e passei a planejar minha lua de mel com minha mulher.

Pois, assim que cheguei à Tailândia, me vi quase imediatamente separado dela e levado a um centro de detenção.

Para muitos, meu retorno à Austrália foi uma vitória gloriosa; para mim, foi uma conquista pela metade. Estou seguro e voltei para o lado da minha mulher, mas também fui lembrado de que meu sonho de um dia voltar à terra natal não se realizará tão cedo. O Bahrein só tem uma cela a me oferecer, enquanto a Austrália se transformou em meu lar, onde tenho o apoio do povo e do governo.

Preso, tive bastante tempo para pensar em como cheguei até ali. Não tenho dúvida de que minha detenção na Tailândia foi uma punição pelas críticas ao xeque Salman, membro da família real barenita, durante sua campanha à presidência do órgão máximo do esporte, a Fifa, em 2016. E há grandes chances de que as denúncias que fiz de suas supostas violações dos direitos humanos, em 2011, tenham contribuído para a derrota nas eleições.

Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

Leia também: Para que servem os direitos humanos? (artigo de Flávio Pierobon, publicado em 9 de dezembro de 2018)

Hoje sou um homem livre, mas o que dizer dos mais de 150 atletas e profissionais do esporte que foram presos e, em alguns casos, até torturados, em 2011? Alguns continuam encarcerados até hoje, sem que nenhuma investigação confiável sobre esses abusos tenha sido levada adiante.

O esporte no Bahrein tem um lado sombrio; o reino o utiliza, assim como suas riquezas, para esconder um legado de abusos e silencia aqueles que tentam chamar a atenção para o padrão.

A ativista Najah Ahmed Yousif foi torturada, sofreu abusos sexuais e foi presa, em 2017, por ousar criticar o Grande Prêmio de Bahrein; o jornalista Ahmed Ismail Hassan foi morto a tiros enquanto tentava cobrir os protestos que marcaram a corrida, em 2012. Salah Abbas Habib Musa, líder de várias manifestações, foi alvejado pela polícia durante o fim de semana da disputa, e ninguém foi responsabilizado por sua morte. Uma nova competição será realizada no fim deste mês no país, e, se a administração da Fórmula Um não conseguir forçar a libertação de Yousif, melhor cancelá-la.

Em Bahrein, quem se manifesta sofre consequências, mas estou disposto a assumir o risco pessoal de defender os direitos humanos até as últimas consequências, como muitos barenitas corajosos o fazem. Não se enganem como eu, quando saí para a lua de mel na Tailândia: posso estar livre agora, mas, da mesma forma que tantos outros críticos pacíficos, continuo sendo um alvo. Os parentes do meu amigo Sayed Ahmed estão presos no Bahrein porque ele denunciou o regime em Londres, onde mora atualmente. E esta semana a justiça barenita decidiu manter a sentença de três anos de detenção naquilo que a ONU considera um ato ilegal de represália às relações familiares.

O país se sente à vontade para agir assim graças a Donald Trump, que deixou bem claro às autoridades barenitas que “não haverá restrições com este governo”. Os EUA estavam em uma posição privilegiada para ajudar a acabar com meu suplício, mas preferiram se omitir.

Leia também: A quem se destinam os “direitos humanos”? (artigo de Pedro Filipe C. C. de Andrade, publicado em 22 de março de 2018)

Leia também: O novo êxodo (artigo de Atila Roque, publicado em 12 de setembro de 2015)

De fato, o secretário de Estado Michael Pompeo esteve no Bahrein e elogiou a parceria estratégica entre os dois países, mas não mencionou meu caso. Aliás, não só se absteve de abordar minha situação quando eu ainda estava detido na Tailândia, como nem sequer levantou a questão dos direitos humanos. Os EUA tinham todos os meios para usar sua influência, já que Bahrein é um forte aliado e sede da Quinta Frota, mas não aproveitaram a oportunidade. O mesmo vale para o Reino Unido, que vergonhosamente evitou oferecer apoio pela minha situação.

Se o Bahrein apreendeu alguma coisa ao tentar me extraditar, foi que seu governo pode prender, torturar e reprimir seus cidadãos, pois países como os EUA e o Reino Unido vão continuar a fazer vista grossa. Meu caso enfatiza o enorme poder barenita de passar por cima dos padrões internacionais, inclusive levantando um “alerta vermelho” ilegítimo para a Interpol prender um refugiado em trânsito.

Também mostra que os EUA e o Reino Unido consideram seus interesses mais importantes que a vida dos barenitas. Esses países estão deixando de lado os direitos humanos num momento em que a situação no Bahrein está piorando e só vai continuar a se deteriorar.

Tenho muita sorte de ter podido voltar para a Austrália e retomar minha vida, mas muitos compatriotas meus não têm essa chance. Se recebessem o mesmo apoio internacional que obtive, talvez também estivessem aproveitando a liberdade.

Hakeem al-Araibi, ex-integrante da seleção nacional do Bahrein, hoje joga no Pascoe Vale Football Club, em Melbourne.
The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]