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Feitores castigando negros (1834), de Jean-Baptiste Debret.
Feitores castigando negros (1834), de Jean-Baptiste Debret. Imagem ilustrativa.| Foto: Reprodução

Ao olhar as grandes realizações humanas como as Pirâmides no Egito, a Muralha da China, Petra na Jordânia, o Templo de Baco no Líbano, Angkor Wat no Camboja, e uma dezena de outras obras imensas – e muitas vezes maravilhosas – é cabível perguntar se valeram as vidas que se perderam para construí-las, o terror de milhares de seres humanos escravizados, torturados, submetidos à fome, frio, calor excessivo e certamente muita violência.

Muitas vidas foram sacrificadas em grandes obras que vemos hoje como artísticas, e bem ou mal representam o legado de nossa civilização, já que pensamos nelas como processos criativos, envolvidos numa relação de mão dupla entre a ideia e a realização material de milhões de trabalhadores braçais, artífices, escultores, primeiros arquitetos, pintores e muito, muito sangue, o que faz olhar o processo de criação a partir de outro ponto de vista.

Ali certamente também houve o prazer da coisa bem-feita, por mais adversa que tenham sido as circunstâncias, e não sem razão Hannah Arendt descreveu que aquele que produz coisas materiais a maior parte das vezes não tem domínio racional e ético para controlar este produto.

O resultado de um esforço coletivo, na maior parte das vezes realizado com grandes sacrifícios impostos a muitos, terá significado a partir da intenção, do propósito de quem o determinou, pessoas ou sociedades.

Esta autora distinguia o Animal laborens, que fica absorto no trabalho como fim em si mesmo, cuja única intenção é "fazer a coisa funcionar”, e o Homo faber, que analisa e discute aquilo que faz.

Os registros históricos de nossa civilização constituem um catálogo de experiências de produção das coisas, o ser humano se capacita num processo prolongado e carregado de significados em tropeços, recomeços, sucessos, lágrimas e glórias, conferindo sentido à experiência concreta, pois produzir arte é uma impressão emocional íntima, que denominamos sensibilidade, seguida de uma ação voltada para fora, a habilidade.

Podemos pensar que o resultado de um esforço coletivo, na maior parte das vezes realizado com grandes sacrifícios impostos a muitos, terá significado a partir da intenção, do propósito de quem o determinou, pessoas ou sociedades. A construção das grandes catedrais góticas demandou por vezes séculos de esforços e custos, esforços de populações que talvez devessem estar focadas na própria sobrevivência, na produção de alimentos e outras necessidades mais básicas; no entanto, a crença religiosa e o sentimento de estar no caminho de salvação, motivaram essas pessoas a aceitar o dever de contribuir com trabalho e valores materiais para a consecução da obra. E, embora esses templos tivessem também o objetivo “mercadológico” de impressionar os fiéis, eram e são testemunhos da fé de quem os concebeu e orientou sua construção.

Se no meio deste processo entra chicote, má alimentação, condições precárias, é surpreendente que tantas obras artísticas estejam atualmente disponíveis para nossa fruição intelectual; porém, é preciso lembrar que muitas outras atividades humanas gastaram os mesmos esforços e crimes, sem deixar pouco mais que a riqueza material de alguns, caso da cafeicultura e extração da cana de açúcar, que igualmente utilizaram trabalho escravo e foram de uma brutalidade indescritível, praticamente sem legado cultural para um povo.

Delas sobraram meia dúzia de famílias de latifundiários ainda ricas atualmente por conta da exploração desenfreada da vida de outros seres humanos, um preconceito arraigado contra esses trabalhadores "destituídos de alma”, o conceito de tirar vantagem em tudo, um legado de mazelas, doenças e um país profundamente dividido.

Grupos e classes sociais remanescentes de nosso ciclo cafeeiro e açucareiro mostram um panorama social e histórico diferentes para os grupos dominantes e aqueles formados por negros que constituem a maior parte dos atuais trabalhadores braçais na lavoura e indústria, índios, imigrantes, trabalhadores da informalidade, ou seja, fora do ordenamento legal do trabalho e da política de seguridade social, muitas vezes tratados como simples marginais.

Sem ter construído grandes monumentos, obras grandiosas, cultura artística e legado intelectual produziram um país não inclusivo, uma política mesquinha e movida a populismo, um sistema educacional capenga, que excluída a dedicação de alguns, é incapaz de formar adequadamente uma massa reflexiva e cidadã. Valeu tanto sofrimento, lágrimas e brutalidades?

Wanda Camargo é educadora e assessora da presidência do Complexo de Ensino Superior do Brasil (UniBrasil).

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