• Carregando...
Estátua da deusa da justiça em frente ao prédio do STF, em Brasília. Foto: Felipe Sampaio/STF
Estátua da deusa da justiça em frente ao prédio do STF, em Brasília. Foto: Felipe Sampaio/STF| Foto: Felipe Sampaio/STF

Quem ousa passar além do Bojador da impunidade tem de passar além da dor.

É certo que a já famigerada Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), direta ou indiretamente, constitui novo obstáculo no combate ao crime no Brasil, afetando, com amarras, o trabalho de policiais, membros do Ministério Público e juízes. Longe de se tratar de ordinária criação de tipos penais ou mera grita das associações de classe, a forte resistência à Lei de Abuso de Autoridade se justifica pelo inequívoco estabelecimento de novas balizas à atuação policial, ministerial e do Judiciário, em todo o âmbito da persecução penal: do inquérito ao processo criminal.

A presunção de inocência – inegável direito fundamental do cidadão, mas que atua(va) sobremodo no momento procedimental da prolação das sentenças condenatórias –, com os contornos gizados pela nova legislação, passou a ter força normativa quase absoluta, inclusive no âmbito do inquérito e da formulação da denúncia promovida pelo Ministério Público, fases persecutórias outrora regidas pelo princípio do in dubio pro societate.

Até o advento da nova Lei de Abuso de Autoridade, a força normativa do princípio da presunção de inocência era sopesada em face de outros direitos e garantias igualmente fundamentais, dentre elas a vedação de proteção deficiente dos direitos humanos pelo Estado brasileiro, emergindo deste “embate normativo” distintos “pontos de equilíbrio” situados próximos dos seus polos conflitantes, a depender do momento da atividade estatal de apuração das notícias da prática de infrações penais.

Verificava-se um contínuo e gradual deslocamento do “ponto de equilíbrio” na “balança dos direitos” em aparente choque: inicialmente estabelecido mais próximo ao dever de proteção estatal eficiente dos direitos fundamentais da coletividade, tendia ao encontro paulatino do seu outro polo nesta equação (o princípio da presunção de inocência), à medida que a atividade estatal persecutória avançava rumo ao seu normal deslinde – a sentença de mérito –, quando então se manifestava sob a sua forma mais contundente: o in dubio pro reo.

O termo "justa causa", por exemplo, é expressão genérica, com amplas interpretações, mesmo no âmbito dos doutrinadores

Conforme lição corrente nas salas dos cursos jurídicos, a instauração de investigações criminais e a adoção de diligências investigatórias preliminares não invasivas da intimidade (como, por exemplo, busca de informações e dados abertos na rede mundial de computadores) são providências que deveriam ser adotadas de ofício pela autoridade competente diante da mera ciência de fatos de aparência criminosa.

Aqui, a investigação preliminar cumpriria o papel de reunir elementos indiciários mínimos da ocorrência de uma infração penal e de sua respectiva autoria. Nesta fase procedimental, o “ponto de equilíbrio” resultante do mencionado embate principiológico (presunção de inocência contra o in dubio pro societate) pendia para a proximidade deste último.

Nas etapas seguintes do caminho persecutório criminal – o oferecimento de denúncia e a decisão judicial do seu recebimento –, exige-se grau de convicção fundamentada. Na dúvida (tomada como sinônimo de ausência de certeza sobre a existência da infração penal e sua autoria, e não como absoluta falta de provas), no paradigma anterior à Lei de Abuso de Autoridade, ainda deveria prevalecer a força do in dubio pro societate: a apuração deve prosseguir, pelo ajuizamento da ação penal, em sede de processo judicial com todas as garantias que lhes são ínsitas (notadamente, o contraditório e a ampla defesa).

Após toda a fase de instrução judicial e produção de provas sob o crivo do contraditório, finalmente o “ponto de equilíbrio” se fixa junto ao outro polo privilegiador das garantias fundamentais do acusado. No momento de decidir a questão criminal, persistindo dúvida objetiva no espírito do julgador, esta dúvida milita em favor do réu.

Agora, com o paradigma iniciado pela Lei de Abuso de Autoridade, dar início ou proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada, ou requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa constituirão crime, o que limitará a atuação dos membros do Ministério Público e das polícias.

O termo "justa causa", por exemplo, é expressão genérica, com amplas interpretações, mesmo no âmbito dos doutrinadores. Para alguns, seria o conjunto de elementos mínimos apto a permitir a persecução criminal. Difícil, mais ainda, é estabelecer quais seriam os elementos mínimos: um laudo pericial, testemunhas, palavra da vítima, entre outros.

O artigo 9.° da referida lei, por exemplo, estipula que decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais configura fato sancionado com pena de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. Definir "desconformidade com as hipóteses legais", quando o artigo 312 do CPP enuncia a presença de requisitos nominados "garantia da ordem pública e econômica" e "conveniência da instrução criminal", por exemplo, é tarefa árdua e torna extremamente inseguro, imprevisível e desafiador o trabalho do requerente da prisão e daquele que a decreta, ainda que certos da presença dos pressupostos da prisão cautelar, segundo a jurisprudência dominante. Lembremos que, ultimamente, o entendimento dos tribunais costuma alterar-se rapidamente, sem muitos rodeios. No mesmo viés, caprichos, manifestamente, falta de justa causa, termos e expressões da lei em que cabíveis diversos caminhos interpretativos.

Como é sabido, direito ainda não é matemática e, excetuados os absurdos, desconformidades com as hipóteses legais podem surgir por divergência de concepção de mundo, de ideias e de filiação a determinados posicionamentos jurídicos.

Apesar de a vigência somente ocorrer 120 dias após a publicação, e ser ainda dogma jurídico a irretroatividade da lei penal, recentemente o Supremo Tribunal Federal, por analogia, engendrou hipótese de aplicação de tipo penal, por extensão, também em aparente violação ao princípio da legalidade penal (na ADO 26 e no MI 4733), outro dogma agora contestável. Assim, não surpreenderia a possibilidade de retroação da mencionada lei para atingir ato pretérito ou o alargamento de seus conceitos. As recentes decisões (e inquéritos, e buscas e apreensões) do Supremo Tribunal Federal somente serviram para fortalecer a insegurança jurídica no exercício do mister dos promotores de Justiça e juízes.

As consequências para o sistema de justiça criminal são nefastas. Exemplo corriqueiro na praxe forense: a mulher vítima de violência doméstica. Em inúmeros casos, pelas circunstâncias da violência doméstica, não há testemunhas. Praticará o crime o promotor de Justiça que, ciente, requisitar a instauração de inquérito policial ou que denunciar? Para o acusado, certamente, o decreto prisional, a denúncia, a investigação estarão fora das hipóteses legais, o que permite a representação, além de eventual ação penal privada subsidiária, contra o exercente do cargo do Ministério Público e da magistratura, que, em determinado caso concreto, vislumbrou tais indícios, passíveis de diversas interpretações. O acusador e o julgador transformar-se-iam em acusados, com as sanções correspondentes.

Em todas as hipóteses acima, o sistema de Justiça criminal tinha seus remédios: apelação, recurso em sentido estrito, habeas corpus e revisão criminal. Vislumbrada infração disciplinar, oportunizava-se o rígido controle do CNJ e do CNMP. Aos corruptos, a ação penal condenatória. Com a largueza de interpretação que vem sendo levada a efeito nos tribunais pátrios, no CNJ e CNMP, sobremodo quando se trata de sanções a membros do Ministério Público ou do Poder Judiciário, passará o exercente do cargo público a, na dúvida, optar pelo viés que menos transtornos pessoais e profissionais puder lhe causar. Não é covardia nem pusilanimidade, é o instinto de sobrevivência.

Assim, apesar de aparentemente, conforme as impressões iniciais divulgadas pela imprensa, obstar investigações e ações penais relacionadas à grande corrupção ou ao crime organizado, observa-se, infelizmente, que a Lei de Abuso de Autoridade constituiu novo modelo de atuação das polícias, do Ministério Público e do Judiciário em todos os casos criminais, de violência doméstica a tráfico de drogas, de homicídios a crimes contra o patrimônio ou ambientais.

No país que pretendia ultrapassar o Bojador da impunidade, novos ventos fazem retroceder ou, pior ainda, navegar por mares da insegurança, da inversão de valores e da neutralização das autoridades incumbidas de defender a sociedade ou de julgar aqueles que a atacam.

Igor Clóvis Silva Miranda e Frank Ferrari são promotores de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]