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O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski (esq.), e o presidente dos EUA, Donald Trump, em encontro em Nova York, 25 de setembro de 2019, às margens da Assembleia Geral da ONU
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski (esq.), e o presidente dos EUA, Donald Trump, em encontro em Nova York, 25 de setembro de 2019, às margens da Assembleia Geral da ONU.| Foto: Saul Loeb/AFP

Depois de ver o pedido de impeachment formalizado na Câmara, Trump evidentemente concluiu que, expondo o relatório descritivo da conversa telefônica de 25 de julho que teve com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, silenciaria a sanha investigativa. Não poderia estar mais errado.

O documento, divulgado pela Casa Branca na manhã desta quarta, é muito pior do que se imaginava; demonstra que Trump negociou vários favores com um líder estrangeiro em troca de ganhos pessoais e, ao fazê-lo, violou o juramento solene de preservar, proteger e defender a Constituição.

O memorando entrega o jogo. Depois que os dois líderes trocam gentilezas e concordam que os países europeus deveriam oferecer mais ajuda à Ucrânia, Zelensky afirma que seu país está pronto para discutir os "próximos passos" e é específico, levantando a intenção de comprar armas dos EUA. Em resposta, Trump pede a Zelensky que "nos faça um favor", instando o colega "a descobrir o que aconteceu com essa situação toda na Ucrânia; falam de CrowdStrike", antes de acrescentar que pedirá "ao procurador-geral que ligue para você ou seu pessoal", reafirmando que "gostaria que você fosse a fundo na questão".

O diálogo parece realmente ser um pedido de ajuda aos ucranianos para sabotar histórias e procedimentos danosos ao presidente, incluindo o processo criminal federal de Roger Stone. "CrowdStrike" é referência a uma empresa privada de segurança cibernética que o Comitê Democrata Nacional contratou para investigar o hackeamento de seus servidores, em 2016. Embora os investigadores federais tenham comprovado de forma independente que a Rússia estava por trás dos ataques, Stone e outros aliados de Trump reafirmam uma teoria da conspiração de que o governo se baseou em "um relatório inconclusivo e infundado" preparado pela CrowdStrike. Se, como tudo indica, Trump realmente estava pedindo ajuda a uma potência estrangeira para desacreditar uma investigação criminal federal de seu aliado político, estava praticando, sim, uma conduta passível de impedimento, violando o juramento que fez para garantir que as leis sejam executadas à risca.

É imprescindível que o Congresso obtenha outros materiais que embasem essa infração passível de impedimento

Zelensky entende o recado – e explica que um de seus assessores já falara com o advogado pessoal de Trump, Rudy Giuliani, reafirmando esperar que este pudesse ir à Ucrânia para conhecê-lo pessoalmente. Além disso, garante que "todas as investigações serão feitas de forma aberta e transparente".

Trump, porém, não para aí; pede a Zelensky um segundo favor. Fala sobre Joe Biden, pré-candidato democrata às eleições de 2020, e as alegações infundadas de que, quando era vice-presidente, teria "parado o processo judicial" de uma empresa ucraniana ligada a seu filho Hunter. E acrescenta que "muita gente quer saber direitinho isso aí, por isso o que quer que você faça com o procurador-geral será ótimo".

As implicações não deixam dúvidas: Trump queria que a Ucrânia investigasse Joe Biden. A reação de Zelensky mostra que ele entendeu o recado, e garantiu que nomearia um procurador leal e que "ele(a) avaliaria a situação com cuidado".

E aproveitou também para pedir a Trump que enviasse "qualquer outra informação que possa nos ser útil". O norte-americano então reiterou o acordo: "Vou pedir que o Giuliani ligue e eu mesmo vou falar com o procurador Barr. Vamos até o fim disso aí."

Trump e seus defensores podem até alegar que não houve abuso de poder presidencial por ele não ter mencionado o fato de que, na época, os EUA estavam segurando US$ 391 milhões em ajuda militar à Ucrânia. Só que isso não importa; foi uma traição ao povo norte-americano e ao nosso sistema eleitoral, justo e livre, pedir a um governante estrangeiro que investigasse o adversário. Só essa solicitação já é uma infração passível de impeachment.

Para piorar, Trump já tinha mencionado a Zelensky que "os EUA têm sido muito bons com a Ucrânia"; não havia necessidade de falar da retenção dos fundos explicitamente. O líder de um país recém-invadido pela Rússia notaria se os norte-americanos segurassem uma verba equivalente a 5% de seu orçamento bélico.

De fato, embora o pedido de ajuda a um líder estrangeiro para prejudicar um adversário político já seja um abuso de poder monstruoso por si só, o memorando é também forte evidência de que Trump estava oferecendo um toma lá, dá cá implícito. O rumo da conversa deixa claro até que ponto Zelensky buscava a ajuda e os favores de Trump; nesse tipo de clima, é impossível não encarar o apelo do presidente como um ato coercivo.

Ele fez questão de estipular os limites da conversa ao dizer "fazemos muito pela Ucrânia" e "eu não diria que é necessariamente recíproco", sugerindo que os ucranianos poderiam fazer mais pelos EUA e depois pedir favores. A implicação é inconfundível: fazemos muito por você, agora espero que você faça algo para mim.

Embora não haja dúvidas de que muita coisa ainda virá à tona, principalmente agora que a reclamação formal do(a) delator(a) chegou ao Congresso e foi divulgada ao público – nesta terça o Senado aprovou unanimemente uma resolução exigindo isso –, o memorando por si só é extremamente danoso. Só que a conversa não acaba por aí; é imprescindível que o Congresso obtenha outros materiais que embasem essa infração passível de impedimento. Várias reportagens sugerem que diversos membros do alto escalão do governo tentaram impedir Trump de se reunir com/telefonar para Zelensky porque temiam que o presidente usasse a oportunidade para fazer exatamente o que fez: pedir informações que pudessem prejudicar Biden. O Congresso tem todo o direito de obter provas e testemunhos adicionais que ajudem a colocar a conversa do presidente no contexto apropriado.

O padrão adotado por Trump, traindo seu país em troca de benefícios pessoais, vai muito além dos favores que pediu ao líder ucraniano; já quase no fim do diálogo, Zelensky diz que, da última vez que viajara aos EUA, ficara na Trump Tower. O fato de o norte-americano ter aceitado hospedar o ucraniano pode não ter sido um emolumento inconstitucional, já que Zelensky não era uma autoridade estrangeira na época, mas a questão implícita é a mesma: como outros que querem cair ou se manter nas boas graças do presidente, Zelensky deu preferência ao seu negócio. O presidente está lucrando com a presidência; colocar suas empresas como centros cultivadores de influência é e deve continuar a ser um componente importante do pedido de impeachment.

O Congresso tem todo o direito de obter provas e testemunhos adicionais que ajudem a colocar a conversa do presidente no contexto apropriado

Infelizmente, o presidente que vemos nesse memorando não nos é estranho; é o mesmo homem que pediu ao ex-conselheiro da Casa Branca, Don McGahn, que demitisse o conselheiro especial Robert Mueller e mentiu negando o fato depois.

É o mesmo homem cuja campanha presidencial de 2016 foi "receptiva" às ofertas russas de assistência, incluindo supostas sujeiras sobre sua adversária política.

É o mesmo homem que usou seu advogado particular para perpetrar e esconder violações financeiras ao longo da campanha.

É o mesmo homem que sugeriu anistiar seus aliados para impedir que cooperassem com a investigação federal, que tentava descobrir a verdade sobre a ingerência russa em nossa votação.

É o homem que só pensa nos próprios interesses, e não nos do povo norte-americano. É o homem que violou repetidas vezes a Constituição e o juramento que fez de preservá-la, protegê-la e defendê-la. Permitimos que se safasse por tempo demais. Agora chega.

Noah Bookbinder é o diretor executivo da Citizens for Responsibility and Ethics, uma instituição sem fins lucrativos de Washington.

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