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 | Wilson Dias/Agência Brasil
| Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Dias atrás, o ministro extraordinário da Segurança Pública, Raul Jungmann, apresentou diagnóstico sobre o sistema prisional brasileiro. O levantamento mostra que até 2016 – dados mais recentes – a população carcerária era de 726,7 mil, o que colocaria o Brasil em terceiro lugar entre os países com maior população prisional do mundo.

Impressiona, desde logo, a insistência em apostar num relatório com graves falhas, detalhadamente apontadas no artigo O mito do encarceramento em massa e pelo Conselho Nacional de Justiça, que denunciou a imprecisão no método adotado pelos estados para contagem dos presos. Vale dizer: é precária, deficiente e inconfiável a atualização dos dados lançados nesse sistema que, a título de exemplo, computa em duplicidade presos transferidos entre os estados da Federação e inclui presídios que contabilizam os detentos de acordo com o número de marmitas fornecidas no local, gerando o fenômeno do “novo preso” quando da simples repetição de uma refeição.

Até mesmo para o padrão de inépcia da estatística brasileira, esse relatório apresenta falhas grotescas e intoleráveis. O gráfico 21 refere que a 46% dos apenados certamente foi imposto o regime inicial fechado, pois receberam pena superior a oito anos. Paradoxalmente, o gráfico 5 aponta que 40% dos sentenciados foram apenados com esse regime. Pior: de acordo com o gráfico 8, 100% dos presos provisórios no estado do Sergipe estão detidos sem condenação há mais de 90 dias. Isso leva à conclusão de que ninguém foi preso dentro do período de três meses anteriores à contagem (estariam os juízes e a polícia daquele estado em greve?). Last but not least, manteve-se a tradicional falta de critérios no cômputo total, que inflaciona o número de prisões ao incluir na conta os apenados do regime semiaberto e aberto (ou seja, não encarcerados). Para que se tenha uma ideia da gravidade dessa falha, apenas na região metropolitana de Porto Alegre dois terços dos apenados vinculados ao regime semiaberto cumprem “pena” em casa. São os chamados “presos da nuvem”, definição altamente sugestiva quando tratamos do sistema prisional brasileiro.

O sistema prisional brasileiro funciona como uma verdadeira porta giratória

Em tom apocalíptico, o ministro reverbera um prognóstico sobre o aumento do número de presos, referindo que a expectativa é de que a população carcerária brasileira seja de 841,8 mil ao fim de 2018 e que atinja, em 2025, 1,47 milhão de detentos. Não lhe ocorre, por acaso, que o aumento do número de presos é decorrência direta da explosão de criminalidade no país? Que a criminalidade, por seu turno, é fruto da impunidade, da tibieza da pena e da estipulação de um regime de cumprimento de “faz de conta”? Ou, ainda, que a incapacitação (ou seja, prisão) de delinquentes contumazes por longos períodos implicaria redução drástica dos índices de criminalidade, conforme fartamente comprovado pela experiência americana (veja-se Thinking About Crime, de James Q. Wilson)? Para que se tenha uma ideia da relação entre crime e punição no Brasil, o número de roubos reportados às autoridades (apenas nas capitais brasileiras) no ano de 2016 totalizou 1.756.757 registros (conforme o último anuário da segurança pública divulgado pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública), enquanto o relatório do Infopen dá conta de que o Brasil contabilizava, no mesmo período, apenas 154.304 detentos cumprindo pena por esse delito. Em profícuo estudo publicado na Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o juiz de Direito Aylton Cardoso de Vasconcellos realizou exame analítico dos 372.402 processos criminais em tramitação naquele estado no ano de 2015, verificando que: 1. os processos de réus soltos correspondiam a 94,64% do total; 2. em 90,33% dos processos criminais encerrados em 2015, não houve imposição de pena criminal por sentença condenatória; 3. 52,97% dos presos provisórios já haviam sido julgados em primeiro grau. Diante dessa amostragem, como podemos falar em “superencarceramento”?

O fato é que o Brasil prende pouco e prende mal. O sistema prisional brasileiro funciona como uma verdadeira porta giratória: a cada semestre devolvem-se às ruas, no mínimo, 25% do total de apenados (o relatório informa que os dados estão incompletos), inúmeros deles presos por várias vezes. Dito de outro modo: para que alguém seja mantido preso no Brasil, é necessário que a sociedade ordeira pague periodicamente o “pedágio” da reincidência daqueles que não deveriam ter sido libertados e, uma vez soltos, tornam a delinquir.

Não satisfeito, o ministro afirma ainda que “o principal problema que temos hoje em termos de segurança pública é o sistema prisional”. Atestando a inépcia do órgão que representa (a quem mais caberia resolver esse problema?), ele martela a tese tão surrada quanto falsa de que a prisão agrava o quadro de criminalidade do país, festejando a agenda de desencarceramento, que tem influenciado, de forma catastrófica, as políticas criminais no país pelo menos desde a década de 80, período de expansão das organizações criminosas com base no não menos criminoso abandono do sistema prisional pelo Estado, que agora denuncia o caos que ele mesmo gerou e nutriu.

Leia também: Bandido bom é bandido preso (artigo de Ricardo Salles, publicado em 26 de julho de 2018)

Leia também: Os problemas penitenciários do Paraná (artigo de Isabel Kugler Mendes, publicado em 21 de janeiro de 2018)

Ignorando o elementar princípio da separação dos poderes, o ministro também declara que a “Justiça Criminal adota o encarceramento como solução no país”, parecendo desconhecer o fato de que o Poder Legislativo é quem detém prerrogativa constitucional para elaboração de leis que impõem a pena de prisão e que a ingerência do Executivo, ao estabelecer políticas de desencarceramento (ladeado pelos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público), implica usurpação da representatividade do parlamento. Completando o festival de clichês, afirma que “exposta, vulnerável e com medo da violência, a saída (para a opinião pública) é prender. Quando não, infelizmente, matar. Esta não é a saída que tem de ter. O prende, prende e prende leva a isso [aumento da população carcerária]”. Ou seja, a sociedade, que trabalha cinco meses por ano apenas para pagar impostos, mais uma vez, é a verdadeira vilã. Não o Estado negligente, mas ela, a sociedade, que, homogênea, corrompida e desumana, exige a prisão como vingança. O criminoso, rebelde dissidente, só é criminoso em razão de sua prisão: “delinquiu porque foi preso” e não o contrário.

A falta de conhecimento técnico, somada ao desinteresse pela obtenção de dados efetivamente relevantes (que deveriam ser tratados como questão de segurança nacional e cuja coleta é delegada a ONGs que recebem verbas de organizações internacionais que militam pelo desencarceramento em massa), remete o debate à esfera daquilo que Eric Voegelin denominou “segunda realidade”: as palavras do ministro, como as de qualquer ideólogo militante, não guardam conexão com o mundo real. São símbolos puramente semânticos relacionados a problemas igualmente semânticos; um amontoado de palavras-gatilho, sem qualquer significado concreto. Esse é o motivo pelo qual as autoridades, presas em sua gaiola retórica, atribuem à histeria dos cidadãos ordeiros a “sensação” de insegurança, enquanto uma população atônita permanece refém da barbárie, num país que conta com 17 das 50 cidades mais violentas do planeta e com uma média de homicídios cinco vezes superior à mundial e três assaltos registrados por minuto, apenas nas capitais.

Um ministério que de extraordinário não tem nada e de segurança pouco entende bem poderia receber outro nome: “Ministério da Verdade” seria adequado, considerando que sua expertise é a difusão de narrativas ficcionais. Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força. Quem controla o passado controla o futuro e quem controla o presente controla o passado. Bem-vindos a 1984!

Bruno Carpes é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais.
Diego Pessi
é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e coautor de “Bandidolatria e Democídio – ensaios sobre garantismo penal e criminalidade no Brasil”.
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