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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Na era da marcha das “minorias oprimidas”, virou lugar comum, mesmo no meio acadêmico, repetir que houve um tempo em que cristãos, judeus e muçulmanos viveram em paz e harmonia, e foi justamente quando o controle pertencia ao Islã. Esse “paraíso” pacifista teria ocorrido na Andaluzia, quando os seguidores do profeta Maomé conquistaram o poder e governaram por séculos, antes da reconquista cristã. Mas será que isso é mito ou verdade?

O scholar Darío Fernández-Morera responde essa questão em seu livro The Myth of the Andalusian Paradise, que tem mais da metade das 381 páginas só de referências bibliográficas. Ele alega que, por não dominarem bem o espanhol e o árabe, vários acadêmicos tiveram de beber somente de fontes secundárias, e que estas, muitas vezes, foram deturpadas ou interpretadas por uma lente ideológica.

O livro desmistifica a alegação de que a Espanha islâmica medieval era um excelente lugar de tolerância entre as três principais culturas monoteístas, sob a supervisão de governantes muçulmanos esclarecidos. Os capítulos abrem com várias declarações de pesquisadores e figuras públicas enaltecendo essa época e mencionando o convívio supostamente tranquilo dos três povos. Estão todos, garante Darío, repetindo uma falácia, e em muitos casos por evidente suspeita de desonestidade intelectual, pois parece impossível ignorarem certos fatos.

Os conquistadores muçulmanos usaram a força para derrotar a resistência cristã no reino visigodo, uma civilização nascente e longe de ser bárbara como alguns dizem. Mas eles também ofereceram pactos para os lordes visigodos e líderes cristãos, que viram vantagens em aceitar essa “paz” e se tornarem dhimmis, um status subalterno para cristãos e judeus que abandonassem a luta. Por trás desses “acordos de paz” havia sempre a ameaça do uso da força bruta pelos conquistadores.

Praticamente todos os casos de conquista envolveram algum tipo de convivência entre conquistadores e conquistados

Claro que havia, então, uma “convivência”, mas isso jamais pode ser considerado algo exclusivo dessa época e região. Praticamente todos os casos de conquista envolveram algum tipo de convivência entre conquistadores e conquistados. O autor acredita, então, que talvez esse mito da tolerância islâmica tenha sido construído no século 18 sob o Iluminismo, para vender uma agenda cultural que seria ameaçada pelo reconhecimento do confronto étnico, religioso e social que levou ao declínio essa civilização. Esses pensadores queriam acreditar que era viável uma sociedade multicultural sem a necessidade de um poder implacável de autocratas e religiosos.

Outro ponto importante é que, pela ótica materialista moderna, vários tentaram esvaziar o fator religioso nas conquistas islâmicas daquela época, como se interesses mais seculares e práticos guiassem os conquistadores, e não o fervor da fé, a jihad. Esse mesmo viés materialista também está presente na análise da reação ao avanço islâmico, ou seja, nas Cruzadas. Aceitar que muitos estavam dispostos a morrer e matar por sua religião é algo que não bate bem com as teorias modernas, e por isso muitos historiadores preferiram reescrever os fatos.

As principais evidências citadas para corroborar a tese do esclarecimento islâmico dessa época são dois filósofos muçulmanos que teriam “redescoberto” os gregos, inclusive Aristóteles. Darío mostra como isso é falso, que os muçulmanos continuaram estranhos em parte ao legado grego, ao seu espírito, e que os pensadores da Grécia Antiga não tinham sido “perdidos”, mas sim preservados pelo Império Bizantino.

Foi um estudo de Sylvain Gouguenheim que mostrou isso, e ele pareceu tão ameaçador ao establishment que 56 pesquisadores assinaram uma carta, publicada num jornal marxista, atacando a obra. E por ataque entenda-se adjetivos como “um trabalho de ódio e medo”, ou “racismo cultural” e “islamofóbico”. Os fatos e argumentos levantados pelo autor continuaram intocados. Como ensinam os detetives, siga o dinheiro. Críticos mostraram que há muita verba islâmica nas universidades, e que isso poderia comprometer a isenção de pesquisadores. Retratar o domínio islâmico de qualquer forma que não seja favorável pode significar retaliações pecuniárias, sem falar do rótulo de “islamofobia” que muitos preferem evitar.

Do mesmo autor: Não dá para tolerar o Islã radical (publicado em 21 de dezembro de 2016)

Leia também: O Islã é compatível com a modernidade? (artigo de Ali Zoghbi, publicado em 1º de dezembro de 2017)

Para avaliar o cotidiano daqueles tempos medievais, Darío usou muito os escritos da própria escola Maliki, vertente predominante do Islã na região. Esses textos deixam claro o rigor religioso, a obrigação da jihad e o status subalterno das demais religiões. Essa disposição de matar e morrer por Alá deu uma vantagem estratégica aos muçulmanos nas batalhas por conquistas, e os textos não deixam margem a dúvidas sobre a interpretação do termo: é guerra santa mesmo. Já a jizya, o imposto especial de 10% para cristãos e judeus, tinha claramente o intuito de humilhar esses “infiéis”, tidos como seres inferiores. Se o indivíduo não aceitasse a submissão e conversão, era um “cidadão” de segunda classe, praticamente sem direitos perante seus superiores muçulmanos.

A “convivência”, portanto, era obtida após a escolha dos derrotados entre somente três alternativas: converter-se ao Islã; submeter-se como um dhimmi, pagar a jizya, ser humilhado e viver quase sem direitos; ou ser morto, se não conseguisse fugir (e muitos fugiram ou enfrentaram os dominadores como mártires, comprovando que não devia ser um “paraíso” conviver ali). O autor resume: “A muito elogiada ‘tolerância’ em al-Andalus era, portanto, parte do sistema imperialista do Islã de separação e subordinação dos cristãos. Os cristãos podiam praticar sua religião, mas apenas nos termos do Islã. Os clérigos e governantes islâmicos permaneceram efetivamente no controle em questões de religião e, como a religião dominava tudo, eles permaneceram efetivamente no controle de tudo. O sistema de ‘proteção’, então, era na realidade um sistema de exploração e subjugação”.

A Espanha islâmica medieval não era uma convivência tolerante, mas uma precária coexistência; se não fosse a reconquista cristã, a Espanha hoje seria como os demais países islâmicos, sem vinhos e presuntos. Tentar reescrever a história como se ali as três religiões vivessem numa paz incrível é distorcer a realidade. Não era nada parecido como é hoje na América cristã ou em Jerusalém, na parte dominada por Israel, onde muçulmanos, cristãos e judeus de fato convivem em relativa harmonia e gozam dos mesmos direitos legais.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.
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