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Presidente do STF, Dias Toffoli.
Presidente do STF, Dias Toffoli.| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

A partir de petição atravessada nos autos de leading case, o eminente ministro Dias Toffoli prolatou decisão monocrática, determinando a  “suspensão do processamento de todos os  inquéritos e procedimentos de investigação criminal (PICs), atinentes aos Ministérios Públicos Federal e estaduais, em trâmite no território nacional, que foram instaurados à míngua de supervisão do Poder Judiciário e de sua prévia autorização sobre os dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, Coaf e BC), que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais”.

Tal decisão, por complexa e abrangente, provocou reações imediatas na sociedade brasileira e, em especial, em quadros do Ministério Público, sob o sensível argumento de que o conteúdo decisório prejudicará a urgente e imperiosa necessidade de combate ao crime organizado e seus tentáculos de corrupção política.

Ora, o caso é constitucionalmente intrincado, sendo o mérito de inegável relevância. Para aumentar a polêmica, cumpre ressaltar que o pedido que ensejou a decisão do ministro Toffoli foi de iniciativa do deputado Flávio Nantes Bolsonaro, filho do atual presidente da República e alvo de investigação penal na Justiça fluminense.

Sim, o Supremo já decidiu que o “Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado”. Como se vê, o poder de investigação estatal – policial ou ministerial – não pode tudo.

Entre pesos absolutos, a razão exige o ponderado equilíbrio constitucional

Em tempo, a República elege o cidadão como titular de direitos inegociáveis e subjuga a autoridade pública – seja ela quem for – ao império da lei. Por assim ser, pretensões justas, mas ilegais, são geneticamente inválidas; da mesma forma, pretensões legais, mas injustas, são inconstitucionais por afronta ao postulado normativo do Estado de Direito. Moral da história: a justiça não vive na vaidade das aparências, exigindo forma e materialidade concreta.

Quanto ao ponto específico, o artigo 3.°, VIII, da Lei 12.850/2013 prevê a “cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal” como meios válidos de obtenção da prova, em qualquer fase da persecução penal. Ou seja, eventual transferência de dados do Coaf, Banco Central ou do Fisco ao Ministério Público, à luz de um ambiente cooperativo e sistêmico da administração pública, traduz ato jurídico lícito, hígido e regular. Todavia, há limites objetivos que, uma vez transpostos, fulminam a validade e utilidade processual de possível intercâmbio abusivo de informações.

Em sua decisão, Toffoli bem destacou que “o acesso às operações bancárias se limita à identificação dos titulares das operações e dos montantes globais mensalmente movimentados, ou seja, dados genéricos e cadastrais dos correntistas, vedada a inclusão de qualquer elemento que permita identificar sua origem ou [a] natureza dos gastos a partir deles efetuados, como prevê a própria LC 105/2001”. Portanto, o intercâmbio administrativo deve se restringir ao fornecimento da titularidade e do montante das operações atípicas. Se, de posse desses dados, a autoridade investigadora vislumbrar possível responsabilidade penal, deve, por força da garantia do devido processo legal, angularizar o feito ao Poder Judiciário, solicitando a quebra do sigilo bancário e/ou fiscal protegido pelo artigo 5º, X e XII, da Constituição; pedido este que, por sua vez, poderá ou não ser deferido pelo juiz competente, em decisão fundamentada.

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Por tudo, a questão constitucional é relevante e merece ser dissecada no âmbito do plenário do STF. Agora, salvo melhor juízo, suspender todos os feitos penais em tramitação configura ato desmedido. Aliás, o reconhecimento de repercussão geral sobre a matéria se deu em 13 de abril de 2018, ou seja, o relator tinha a faculdade suspensiva (conforme o artigo 1.035, §5.º, do CPC) havia mais de um ano e permanecia inerte. Será, então, que um pedido do filho do presidente merece tamanha deferência? Será que ainda temos réus de majestade no Brasil? Se fosse um cidadão comum, receberia a mesma distinção? Será?

Entre tantas indagações, a melhor suprema cautela talvez fosse prospectiva, determinando-se que todo e qualquer procedimento investigatório futuro, advindo de entrecruzamento de dados, exigiria prévio aval judicial para a quebra dos sigilos constitucionalmente tutelados. Quanto às investigações e processos em curso, se viciados, são feitos natimortos e com hora de velório. Encerrado o julgamento no Supremo, com data marcada para novembro deste ano, bastaria uma ordem vertical de nulidade. Até lá, a presunção de constitucionalidade dos atos públicos, associada ao alto interesse social no firme combate ao crime organizado e à corrupção, parecem aconselhar a continuidade das investigações e processos instalados, salvo gritante anomalia prima facie.

Entre pesos absolutos, a razão exige o ponderado equilíbrio constitucional.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr., advogado, é conselheiro do Instituto Millenium.

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