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 | Edilson Rodrigues/Agência Senado
| Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Depois de alguma resistência, consegui assistir ao vídeo em que uma mãe se vê forçada a sacar sua arma e, na frente do próprio filho e colegas de escola, dispara à queima roupa e abate um homem. Segundos antes, ele havia apontado sua arma na entrada da escola infantil e dado voz de assalto a crianças, pais e mães. Ela é policial e reagiu com bravura, como havia sido treinada. O homem, caído, implora por sua vida e ela o domina com os pés. Um dos carros dá marcha a ré. Curiosos conferem o homem prostrado no chão, de costas. O vídeo acaba e ele, depois, morre. A cena é de uma brutalidade terrível, senão trágica.

As discussões que se seguiram a essa violência trataram, aos meus olhos, de sua superfície. Isso porque debater a coragem da mãe e o barbarismo do homem não revela a profundidade do drama. O fato pode revelar algo de muito pior. Temo que seja o retrato, nu e cruel, do mundo onde vivemos. Um mundo onde crianças são submetidas a agressões. Onde escolas são vítimas de violência cometidas pelos próprios alunos, entre si e contra os professores. Atrocidades glorificadas nas redes sociais, como se houvesse competição pelo mais grotesco. Um mundo onde há pessoas que não sentem que há algo de muito estranho em sacar armas na frente de escolas. A loucura de achar que tudo isso é normal.

Escolas são sublimes, sobretudo as infantis. A porta de entrada é o símbolo de que há esperança no futuro

Afinal, o que são as escolas, sobretudo as infantis, se não a esperança quanto ao futuro? O que a entrada de uma escola representa? O lugar onde conseguimos sonhar com algo melhor para os nossos filhos e os dos outros, a fim de que aprendam, convivam e se emancipem ao fazer coisas melhores para si e para o mundo. Escolas são sublimes, sobretudo as infantis. São lugares sagrados. A porta de entrada é o símbolo de que há esperança no futuro. Mas, quando um homem saca sua arma e a aponta para crianças que estão prestes a ingressar na escola, está ameaçando matar o futuro dele, delas e de todos nós. Isso é insuportável.

O magnífico livro Onde os velhos não tem vez termina com o diálogo em que um velho policial, criado pelo gênio de Cormac MacCarthy, queixa-se a seu amigo de que ambos vivem num mundo incompreensível, sem qualquer lógica, explicação ou esperança. É aquele onde os velhos não tem vez. Na juventude deles, o aluno era repreendido em sala por mascar chiclete ou conversar. Hoje, levam rifles e matam professores, colegas e amigos, para depois tentar o suicídio. Mundo onde “um homem velho é apenas uma coisa insignificante / um casaco esfarrapado sobre uma bengala”, para citarmos o poema de Yeats que inspirou o título original do livro No country for old men.

Leia também: O desarmamento e suas vítimas (artigo de Salesio Nuhs, publicado em 14 de junho de 2017)

Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

Claro que o mundo dos homens jamais foi habitado por anjos. Os seres humanos são capazes de crueldades inomináveis. Basta que nos lembremos da Operação Condor, do Holocausto, do Gulag ou do Khmer Vermelho. Mas, ainda assim, o cotidiano já foi administrável. Havia esperanças. A vida seguia para o futuro, ainda que as pessoas se matassem, mesmo em guerras. Contudo, poucas vezes se mostrava tão aterradora como hoje se dá no nosso cotidiano banal.

Quando um homem, adulto e miserável, desprotegido da vida e abandonado por todos (inclusive por si mesmo), saca uma arma e a aponta para a porta de uma escola, algo está muito errado. Quando uma mãe se vê compelida a matar alguém na frente de seu filho, para que ele possa entrar na escola, algo está tragicamente errado. Afinal de contas, onde vivemos? Naquele mundo onde, bem pior do que as sombras descritas por MacCarthy, nem o futuro das crianças tem vez?

Egon Bockmann Moreira é advogado e professor da Faculdade de Direito da UFPR.
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