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Imagem de divulgação do especial de Natal do Porta dos Fundos
Imagem de divulgação do especial de Natal do Porta dos Fundos| Foto: Divulgação

É isso mesmo o que você leu: um balão-de-ensaio, um experimento. E colateralmente, uma interessantíssima oportunidade.

Não eles, a coisa em si, a trupe com suas chocarrices. Quanto a eles digo sem meias palavras: deixem o “Porta dos Fundos” em paz. Esqueçam os pobres diabos.

Mas uma oportunidade se desenha para os Cristãos, por efeito do experimento: escolher o lado certo, que é o lado da magnanimidade, o lado dos fortes, dos adultos, dos que sabem quem são e conhecem o espírito da fé. Especialmente quando esse lado é – o que nem sempre acontece – o lado do sistema internacional dos direitos humanos, o lado da Resolução 16/18 da ONU, o lado que lutou contra as leis de blasfêmia até neutralizar seu apelo internacional.

Mas para tanto será necessário elevar-se sobre as chocarrices da elite laicista brasileira.

Sim, chocarrices.

É claro que com a sua peça de sarcasmo tosco o Porta dos Fundos – doravante, “PdF” – cometeu uma indignidade. Não digo que seja claramente um malfeito legal, um crime, apesar de não faltarem acusações nesse sentido. Crime ou não, feriram o sentimento religioso da maioria dos brasileiros.

Não foi por nada que choveram manifestações de indignação vindas das mais diferentes direções – evangélicos e católicos, os mais diretamente atingidos, assim como outros movimentos de inspiração cristã, espíritas, e humanistas seculares simpáticos, ainda que descrentes na religião; pelo menos um presidente de OAB estadual reclamou, membros do Instituto Brasileiro de Direito e Religião escreveram breves libelos, a CNBB se manifestou apontando o risco jurídico da peça com assinatura de Dom Walmor e tudo, e até mesmo a Federação Islâmica Brasileira (Fambras) se insurgiu contra o PdF. O Ministério Público do estado do Rio de Janeiro denunciou o grupo, e a Netflix conseguiu a façanha de atrair contra si mais de um milhão de assinaturas solicitando a retirada da peça!

Mas em outro artigo voltaremos ao problema da legalidade das referidas chocarrices; nosso assunto agora é outro.

Foi inteligente?

Não me furto a conceder: foi certamente imoral o gesto do PdF. Em primeiro lugar pelo ataque gratuito ao sentimento religioso de, como um amigo destacou, pelo menos quatro religiões diferentes.

Em termos humorísticos, não foi grande coisa. A peça é muito apelativa e sarcástica; longe do riso leve, da graça que nos contamina quando rimos da condição humana, a obra deixa um fim amargo na boca, o amargo de um bolo maldoso, que quase certamente leva ressentimento na receita. O sarcasmo é pesado e doído, ansioso, difícil de convencer; está para o humor como o patinho está para a picanha. Você come, mas não chama de churrasco.

Mas o pior é o enquadramento emocional. A peça solta aquele cheiro azedo de ressentimento antirreligioso pelas derrotas políticas recentes, pela ascensão política de uma classe que foi sempre desprezada pela elite secular W.E.I.R.D., como a descreve Jonathan Haidt: "Western, Educated, Industrialized, Rich & Democratic” (Ocidental, Educada, Industrializada, Rica e Democrática). A alegação será, como sempre, o ataque às “lideranças Cristãs que ameaçam o estado laico, e blá blá blá”, mas o alvo efetivo foi o coração do cristão comum, que vê chegar mais uma vez às suas mãos a prova do despeito e do desprezo que essas elites seculares têm por eles.

Em termos políticos, o gesto não me pareceu muito inteligente. O que esperam com isso? Ganhar mais votos para a esquerda?

Talvez não tão besta assim

Think twice. Qual poderia ser o interesse da “obra"?

O PdF tentou deliberadamente produzir uma “sinuca de bico”, uma arapuca contra cristãos conservadores, representando Jesus como um homossexual. Assim o frisson aumentaria exponencialmente e a crítica à peça poderia ser facilmente tachada de homofóbica, retroalimentando o processo.

Sugiro, assim, duas possibilidades: a primeira é só ganhar dinheiro mesmo. É a mais plausível. A segunda, menos plausível, mas que não descarto, seria provar que estamos num estado fundamentalista cristão, sob uma sharia gospel que não aceita o dissenso, e que tentará, certamente, reprimir nossos amigos PdFs. "Ó malditos líderes evangélicos, inimigos da liberdade de expressão!”

Mas é claro que mordiscar os inimigos e ainda ganhar dinheiro seria para eles o melhor dos mundos. Fico com as duas então.

Em todo o caso, mesmo que a segunda possibilidade seja rejeitada por mentes mais caridosas (muito embora os comentários do Fábio Porchat e do Gregório Duvivier em redes sociais e à imprensa pesem em favor dela) calculadamente ou não a situação toda é um balão-de-ensaio. Atenção para isso!

O balão-de-ensaio

Estão os cristãos preparados para o papel de liderança histórica que se transferiu para as suas mãos, respeitando os princípios do pluralismo democrático? Seriam eles, como insinua insistentemente a esquerda secular, uma ameaça às liberdades individuais e à liberdade de expressão?

O caso é que reprimir a liberdade de expressão não interessa e não deveria interessar a cristãos. E menos ainda a evangélicos, que valorizam e precisam da liberdade de expressão.

Desde suas raízes no profetismo hebraico e passando por Jesus e os apóstolos no confronto com líderes religiosos e com o imperador, e por gerações de pais da igreja e pregadores Cristãos que confrontaram diretamente as autoridades, como o fez São Patrício na Irlanda, Lutero na Alemanha e John Knox na Escócia, e seguindo pelas missões cristãs que desde o século 17 e até agora insistem em atravessar fronteiras proibidas para pregar o evangelho, os Cristãos – a despeito de inegáveis momentos de inconsistência – aprenderam a ser amigos da liberdade de expressão.

Essa é uma das grandes agendas, por exemplo, dos milhares de cristãos de Hong Kong que se insurgiram recentemente contra o governo Chinês. Fato que a mídia brasileira não se esforçou para destacar.

Noutro dia um amigo me mostrou um texto alegando que a liberdade de expressão seria um fruto original da Revolução Francesa. Típica carteirada laicista. O primeiro tratado moderno sobre liberdade de expressão, o Areopagitica de John Milton, brotou em 1644 em solo calvinista, em polêmica contra os calvinistas, sendo finalmente absorvido pelos próprios calvinistas como um de seus instrumentos de ação política. E eventualmente a plena liberdade de imprensa emergiria na Inglaterra em 1695, em solo cristão, protestante e puritano, quando a revolução francesa ainda não tinha nem sujado suas fraldas.

Protestantes não precisam de laicista fanáticos nem de humoristas desbocados para conhecer suas obrigações cívicas. O fato é que eles inventaram algumas dessas regras que os laicistas gostam de arrotar.

E isso nos leva ao ponto crucial: o cristianismo contemporâneo é, claramente, uma religião baseada na persuasão, na autenticidade, e na voluntariedade. O evangelicismo, em particular, é uma religião profundamente pessoal e individual. Fazer propaganda, proselitismo, debate público, pregação, música, eventos – é o próprio método de expressão dessa fé profundamente moderna. Ela se alimenta e se espalha empregando exatamente a liberdade de expressão.

Mas com uma nítida diferença, em relação a algumas religiões seculares como o socialismo, que usam a liberdade de expressão para depois aboli-la: é que sendo uma religião do coração aquecido e da autenticidade, o cristianismo evangélico (assim como os “evangelical Catholics” contemporâneos) alimenta-se da persuasão. Membros que não fizeram escolha pessoal não contam, são campo missionário, e não podem ser obrigados a nada. Nada funciona em uma igreja evangélica sem convicção, persuasão e livre escolha.

E antes que alguém dê um pio sobre esses esforços evangelizadores, com a conversa mole da “intolerância colonizadora”, cito o artigo 12.1 da Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969, da qual o Brasil é signatário:

Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.

Destaque para a terceira especificação: “a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças”. Trata-se do sagrado direito ao proselitismo das crenças e das ideias, que tem alcance universal, transcultural, e ao qual defenderemos com unhas e dentes. E é por isso que continuaremos pregando e evangelizando onde houver mundo e enquanto houver história.

Então vale observar: porque cargas d’água um governo povoado de cristãos pluralistas e ávidos por debates apologéticos quereria limitar a liberdade de expressão do PdF? Para dar um tiro no próprio pé?

Não nego a existência hoje de jacobinos de direita com sonhos autoritários, mas a maioria esmagadora dos cristãos é pluralista e a favor do livre-mercado das crenças. Esse mercado deve ser ético, mas precisa ser livre. A liberdade que queremos para nós, queremos para o PdF.

Cristãos não apoiam “leis de blasfêmia"

Até 2011 a Organização para a Cooperação Islâmica tentou emplacar uma legitimação internacional de suas “leis antiblasfêmia” na ONU. Quem era contra? EUA, União Européia e… os cristãos protestantes. Mas nosso Brasil apoiava as leis antiblasfêmia! Até que por queda no suporte internacional os islâmicos aceitaram a Resolução 16/18 da ONU que distinguiu claramente entre o discurso de ódio e a intolerância contra as pessoas de uma religião e a crítica pública às crenças e instituições religiosas dessas pessoas, proibindo o primeiro e permitindo a segunda.

É preciso ser bem claro a respeito: pessoas tem proteção contra a intolerância e a incitação ao ódio, mas as crenças e instituições não gozam da mesma proteção.

Nenhuma religião ou crença tem privilégios especiais: cristianismo, umbanda, socialismo e teoria de gênero (sim, ela também é uma crença), estamos todos no mesmo barco, e todos sob o governo dos artigos 18 e 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: liberdade de religião ou crença para todos, liberdade de expressão para todos.

Quem quer falar, tem que aguentar ouvir

De modo que a melhor resposta ao discurso do PdF será… melhorar a comunicação! Trata-se de um embate teológico, filosófico, artístico e moral. E que tudo se faça dentro das regras do jogo: preservando a liberdade de expressão.

Chateado com o PdF? Ore por eles, e escreva peças contra eles. Mostre a seus amigos o ridículo da coisa, ou apresente-lhes a beleza da história real. Assistir de alma aberta à Paixão Segundo São Mateus de Johan Sebastian Bach já lavou a alma de muita gente de sujeiras piores que o PdF.

Sim, ore por eles: até se arrependerem do que fizeram, nunca mais poderão ouvir Haendel ou Bach de alma limpa e coração leve. Quer um inferno pior do que esse?

Mas sim, fale; com muito respeito e dignidade, fale contra eles. Como os profetas bíblicos, os cristãos entendem que as crenças de humanistas seculares de esquerda, que cultuam a justiça revolucionária, são ridículas como a fé no “divino espaguete voador”, e representam um futuro utópico irrealizável pela mão humana. Os cristãos também pensam, e dizem, que os deuses cultuados em religiões politeístas não são deuses, mas representações de forças da natureza que a ciência já desencantou.

Posso dizer que o progresso por meio da revolução é um “espaguete voador”? Posso. E que Oxum não existe, exceto na imaginação? Posso também. E que a mudança efetiva de sexo biológico é cientificamente impossível? Certamente que posso! E podemos suspeitar que outra coisa mais maligna do que os homens existe, e que vampiriza a consciência humana quando se cultuam esses ícones vazios? Podemos. E que a racionalidade tecnocientífica não poderá salvar a raça humana da ruína final? Podemos e devemos, apesar de ser uma obviedade. Podemos até mesmo dizer que a “nação” é algo temporário e indigno de Esperança, que o “nacionalismo” é uma falsa religião, que a democracia não solucionará os nossos problemas, que as políticas de identidade têm apelo porque servem de muletas psicológicas, etc.

O fato é que cristãos são um tipo muito particular de... ateus. Eles são ateus quanto à “Nação", à “Democracia", à "Felicidade Afetiva", à “Emancipação", à “Justiça Social”, à “Diversidade Sexual" ou qualquer desses outros falsos deuses, e continuarão dizendo por aí que por importantes e valiosas que sejam, essas coisas são apenas criaturas falhas e incapazes de garantir a nossa dignidade. Elas merecem nosso cuidado e a nossa crítica, mas não o nosso culto.

Regras de engajamento

Mas como dizer essas coisas em público se não preservarmos a praça pública? 

Os cristãos deveriam ser os maiores guardiões das regras do jogo. Deveriam ser os campeões do livre-mercado das crenças, das opiniões teológicas e filosóficas, e da discussão política, seja ganhando, seja perdendo.

Em minha opinião, um cristão que deseja converter um LGBT ao cristianismo e convencê-lo de que a moralidade cristã é superior à moralidade W.E.I.R.D., mas... que sonha ao mesmo tempo em limitar judicialmente a crítica pública ao cristianismo, é uma entidade sumamente incoerente.

O que precisamos hoje é de afirmar regras éticas para esse jogo, as regras de engajamento. Mas não tanto uma jurisprudência; essas regras devem ter o mínimo de formalização sustentar-se principalmente como boas práticas, como acordos de confiança e boa vontade, e entre os principais defensores de tais regras seria salutar ter o apoio da imprensa e dos comunicadores.

Mas isso demandará outro gesto: uma disposição para aprender coisas novas – pois o fato constrangedor é que o jornalismo brasileiro entende muito pouco de religião e direito religioso; e trabalha, na maior parte do tempo, respirando seu oxigênio intelectual a partir de pequenas bolhas de senso-comum laico – ou seja, respirando gás carbônico.

Enfim, amigos, vamos deixar o “Porta dos Fundos” descansar em paz com seu especial de natal. Eles que durmam com suas tramoias.

Mas os cristãos devemos ficar com os olhos bem abertos, e não perder essas oportunidades de ouro que o Papai Noel nos entrega assim, de bandeja.

E numa próxima oportunidade, continuaremos a explorar o difícil problema das “leis antiblasfêmia”.

Guilherme de Carvalho é teólogo público e cientista da religião, com foco na articulação entre cristianismo e cultura contemporânea. É atualmente Diretor de Promoção e Educação em Direitos Humanos da Secretaria Nacional de Proteção Global. Seus artigos na Gazeta refletem apenas a sua opinião pessoal.

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