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| Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

No romance 1984, George Orwell não apenas tece uma dura crítica ao regime stalinista da União Soviética, como ainda busca profetizar e detalhar as características do Estado autoritário num futuro não tão distante. Em uma das passagens mais marcantes do imaginário das ciências jurídicas do século 20, Orwell descreve uma cena em que uma gaiola cheia de camundongos famintos é colocada diante do rosto de um acusado de crime político.

O procedimento penal descrito por Orwell funcionava da seguinte forma: por meio da ameaça psicológica e física de abrir a gaiola dos famintos camundongos, extraía-se uma confissão do acusado, pouco importando se esta confissão era verdadeira ou não. O que importava, no procedimento em questão, era apenas a confissão da culpa e não desvendar a verdade dos fatos.

Embora o procedimento acima apenas faça parte das páginas da literatura, é importante visualizar seu valor metafórico, uma vez que medidas análogas a esta são muito comuns em países que atravessam períodos de obscuridade democrática. A título de exemplo, no Brasil, podemos citar a infeliz utilização de prisões preventivas, sistematicamente decretadas como um meio de obtenção de acordos de delação premiada.

Mais recentemente, o ministro Sergio Moro, em seu discurso de posse como ministro da Justiça, apresentou uma série de medidas que, de forma bem-intencionada, visam combater a criminalidade no país. Dentre essas medidas, entretanto, chamou a atenção a proposta de adoção do plea bargain no Brasil, instituto muito utilizado nos Estados Unidos.

Nossas questões não devem ser resolvidas com imitações, mas com inteligência e criatividade

Apoiando a ideia veiculada pelo ministro Moro, o Ministério Público Federal divulgou “nota técnica conjunta”, declarando apoio à aplicação do plea bargain no Brasil, com o argumento de tratar-se de ferramenta apta a barrar a impunidade no país.

Mas afinal, o que é o plea bargain? Pode-se definir o plea bargain como um acordo realizado entre o Ministério Público e o acusado, por meio do qual este “confessa” a culpa de crime(s) a ele imputado(s), em troca de algum “benefício” por parte do Estado. Tais “benefícios” podem se dar tanto por meio de um abrandamento das acusações, como pela própria redução da pena final a ser aplicada contra o réu.

Em que pese a existência de outras medidas análogas ao plea bargain no sistema jurídico pátrio – como é o caso da transação penal, da suspensão condicional do processo e da já citada “delação” premiada –, entendemos que a mera ampliação dos acordos celebrados entre o Ministério Público e os acusados resultará em mais prejuízos que ganhos em termos de política criminal. Isso porque, embora a adoção deste instituto traga ares de modernidade ao nosso sistema penal, ensejando aparente “eficiência” e “agilidade” ao desfecho dos casos, o plea bargain possui outros inúmeros problemas, que ensejam uma cuidadosa reflexão.

Dentre estes problemas, podemos mencionar: a relativização de valores democráticos previstos na Constituição que, ao nosso ver, são indisponíveis, como a presunção de inocência e o devido processo legal; e, como consequência, o inevitável aumento da população carcerária, que, além de trazer inúmeros prejuízos do ponto de vista social, acaba por onerar ainda mais o já deficitário orçamento público.

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Ao acusar alguém de um crime, o Ministério Público poderá, em seguida, oferecer uma imediata proposta para que o acusado confesse sua culpa, tendo em vista um abrandamento da pena total. Resultado? Em vez de apresentar suas provas e argumentos no âmbito do processo, é muito provável que este acusado, amedrontado com as acusações e com a espada de Dâmocles sobre a cabeça, firme o acordo oferecido pelo Ministério Público e sofra a pena, ainda que reduzida do quantum original.

Reflitamos. O acordo acima exposto não parece guardar a mesma lógica da “gaiola de camundongos” de George Orwell, uma vez que primeiro intimida-se o acusado com um mal gravíssimo para, posteriormente, extrair-lhe uma confissão?

Nota-se, pois, que em nome do “princípio da celeridade processual” faz-se letra morta da presunção de inocência e corre-se o risco de punir um inocente.

Importante ter em vista que punir por punir de nada resolve, pois, em vez de se atacar a causa da doença, mata-se o paciente. A impunidade se combate com capacitação e valorização dos atores do Direto a fim de que, como regra, as investigações conduzam ao processo e a uma prova robusta que permita o processamento, a defesa e a sentença. Ao nosso ver, e no frigir dos ovos, o mero plea bargain, além de não resolver os problemas acima enunciados, constitui fator decisivo para ausência do estimulo da investigação cientifica.

Basta olhar para a aplicação do plea bargain nos Estados Unidos, cujo contexto jurídico é muito mais afeito à “justiça consensual” que no Brasil. Naquele país, onde o plea bargain incide em mais de 90% dos casos, não houve uma redução da criminalidade; por outro lado, ocorreu um drástico aumento da população carcerária, o que tem gerado inúmeras críticas ao instituto.

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Com mais de 30 anos de advocacia criminal, constato que a efetividade das normas constitucionais é mais importante que a simples edição ou importação de outras. Não é à toa que juristas como o italiano Giorgio Agamben e o espanhol José Maria Silva Sanchez entendem que diversas medidas de viés autoritário, como o simplório plea bargain, têm se proliferado gradativamente nas democracias contemporâneas, colocando a Constituição como refém de uma suposta “eficiência administrativa”.

Outro aspecto, imprescindível à análise, refere-se ao fato de o plea bargain ter nascido numa tradição jurídica anglo-saxã – onde impera o modelo common law de justiça –, sem qualquer correspondência com a estrutura do civil law adotada no Brasil, sob a influência da Europa Ocidental. Ou seja, inserir simplesmente o plea bargain no modelo brasileiro, sem levar em conta todo o contexto jurídico-social que permeia este instituto nos Estados Unidos, nada mais é que produzir aqui uma gaiola jurídica.

Tudo isso mostra apenas um triste fato: nossa profunda crise de identidade nacional, que resulta em uma equivocada propensão em meramente importar expressões, gestos e agora também institutos jurídicos completamente estranhos à nossa realidade. Nossas questões não devem ser resolvidas com imitações, mas com inteligência e criatividade. A reflexão parece-nos imprescindível, pois, como bem diz Aristóteles, “o ignorante afirma, o sábio dúvida, o sensato reflete”.

Essa reflexão nos parece ser o caminho que o país deve tomar não apenas para enfrentar a impunidade, a crise econômica ou os camundongos de George Orwell, mas para combater outro fantasma muito bem ilustrado pelo saudoso dramaturgo Nelson Rodrigues: nosso bom e velho “complexo de vira-lata”.

Eduardo Reale, advogado criminalista, é doutor e mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra. Rômulo Garzillo, advogado criminalista, é mestrando em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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