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Colégio Militar do Paraná.
Colégio Militar do Paraná.| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Foi divulgado recentemente pelos meios de comunicação que o Ministério da Educação almeja implantar mais 108 "escolas cívico-militares" nos próximos quatro anos. A proposta prevê a criação anual de uma delas em cada unidade da Federação com vistas a atender mais de 100 mil alunos, e investimentos de R$ 40 milhões. Esta nova quantidade vai se somar às 240 escolas que já estão estabelecidas e funcionando plenamente.

As novas escolas cívico-militares projetadas, juntamente com as que se encontram em atividade, indicam claramente que se encontra em curso um processo de militarização do ensino público. Observe-se que o fenômeno da militarização em seu sentido literal – isto é, de acordo com a teoria política – se refere à concretização do insistente discurso que apregoa uma mudança nas crenças reinantes na sociedade, necessárias para legitimar o uso da força e o emprego de grandes exércitos permanentes. Assim sendo, deve ser dito que a militarização do ensino civil se encontra associada ao fenômeno da militarização. Consequentemente, ela requer ser compreendida como a presença ativa de militares em diversos setores da estrutura educacional e/ou como o emprego de concepções militares nas organizações próprias da educação. Embora em nosso país inexista esta militarização, o imaginário dos militares possibilita a utilização deste conceito.

Entendida desta maneira, é possível asseverar que a militarização do ensino civil não é uma ocorrência típica de nosso país. Com efeito, ela já se manifestou ou continua se manifestando em outros rincões do planeta por razões diferentes. Na Coreia do Norte, que tem o quinto maior exército do mundo, a justificativa é a necessidade de capacitar todos os coreanos para enfrentar a guerra. Na China, que agrega o maior exército do planeta, visa-se conter a disseminação de ideologias contrárias à que é recorrentemente defendida, particularmente as concepções e valores liberais. Em Israel, que conta com forças armadas mais reduzidas, porém consideradas as mais qualificadas entre todas as nações, o motivo se encontra no exacerbado nacionalismo manifestado por todos os israelenses. Nos Estados Unidos, que têm um enorme e qualificado exército, o forte sentimento patriótico se mostra como o fator mais relevante.

No Brasil, a militarização do ensino civil é, substancialmente, uma decorrência do imaginário militar, ou seja, da atividade criativa que se manifesta na mente dos servidores fardados. Com apoio em Sartre, pode ser dito que nesta atividade o objeto percebido ou imaginado encontra-se do lado externo e é a ideia do objeto que se incorpora à nossa consciência, e não o objeto em si, pois a ação de imaginar é algo intencional que se consubstancia no desejo de que surja na consciência uma imagem específica. O ato de imaginar é sempre norteado por determinadas reações afetivas; consequentemente, assim que um objeto é concebido, ele se liga a determinados sentimentos. A concepção de socialização secundária utilizada por Berger e Luckmann clarifica o modo pelo qual este imaginário é mentalmente construído. No caso dos militares, o processo de socialização que ocorre no âmbito da caserna, juntamente com a educação formal que recebem, são os responsáveis pela internalização de um imaginário singular e específico, isto é, de um modo relativamente padronizado e estável de pensar e sentir que orienta suas ações.

Inexistem alegações suficientemente sólidas e convincentes a favor da militarização do ensino civil

As múltiplas intervenções dos militares na esfera política do país como um exercício do poder moderador, no transcorrer do século passado, deveram muito às peculiaridades do imaginário que trazem dentro de si. As teorias que explicam estas intervenções apontam alguns fatores que contribuíram para a elaboração deste imaginário, que começou a ser sedimentado no período colonial da história brasileira. Naquela época, as exigências para entrar na Academia Imperial Militar eram extremamente rigorosas; o curso, com duração de sete anos, requeria elevado empenho nos estudos, e para se formar era preciso enfrentar uma banca de professores. Na década de 20 do século passado ocorreram dois processos modernizadores nas Forças Armadas, um deles orientado pelos alemães e o outro, patrocinado pelos franceses. Tais ocorrências, aliadas à intensa força do código de ética corporativo, contribuíram para a instauração de um sentimento messiânico de supremacia na subjetividade de cada um dos membros do quadro de oficiais.

Este sentimento perdura até os dias de hoje em decorrência do repetitivo processo de socialização secundária e da educação formal recebida, a qual continua cobrando extremo esforço e máxima dedicação por parte dos alunos. Acrescente-se ainda que eles fazem parte de um grupo singular e bastante fechado, além de movidos pelos inflexíveis princípios da hierarquia e disciplina, acontecimentos que contribuem muito para reforçar os sentimentos de superestima pessoal e de proeminência sobre os "paisanos". Ambos os sentimentos são potencializados pelo alto grau de confiança depositado nas Forças Armadas pela população no decorrer do tempo, com exceção do período ditatorial, observando que na atualidade ela é vista pelos civis como a instituição nacional mais confiável. Tais sentimentos os ensejam a conceber que os paisanos são desregrados, que a vida social é desorganizada e que cabe a eles instaurar a ordem na sociedade, fazê-la funcionar de modo bem parecido à impecável organização militar.

O imaginário militar em questão os estimulou a intervirem também nos processos pedagógicos próprios das escolas civis. Isto começou a ocorrer a partir do início do século 20 no ensino paulista e incidiu nos Grupos Escolares e nas Escolas Modelos de então, sob a égide da supervalorizada celebração cívica. Logo a seguir, ou seja, após a Primeira Guerra Mundial, apareceu uma nova intervenção, levada adiante em nome do soerguimento moral da nação, da cultura do patriotismo e da defesa da nacionalidade. Após o término da Segunda Guerra Mundial, em nível nacional, a ingerência foi levada a cabo com base nos escopos de forjar a consciência patriótica e internalizar a afeição ao dever militar. Durante os 20 anos de ocaso do regime democrático, atrelada à ideologia da segurança nacional, emergiu no Ministério da Educação a Comissão Nacional de Moral e Civismo, voltada para a implantação da Doutrina da Educação Moral e Cívica não só no ensino básico, mas também no superior.

Desde os primórdios da década de 90 do século passado até data mais próxima, tais intervenções desapareceram. No entanto, há alguns anos emergiu o projeto Atiradores Mirins, patrocinado pelo Exército e desenvolvido nos Tiros de Guerra. Surgiu também a Escola Cívica Brasileira, por iniciativa de um grupo de militares. A mais recente criação é pertinente às escolas cívico-militares, já citadas anteriormente, e que são resultantes da colaboração genial do primeiro mandatário do país. Terão por finalidade o ensino e a aprendizagem de conteúdos relacionados ao civismo, ao patriotismo, à hierarquia, à disciplina e à ordem unida.

Muitos militares, árduos defensores destas instituições educativas, já asseveraram que as mesmas são possuidoras de uma relevância especial, haja vista que ostentam qualidade reconhecida, destacam-se nos exames nacionais, resgatam o patriotismo, proporcionam segurança aos professores e alunos, fomentam a hierarquia e a disciplina, expurgam os perigos que assolam os nossos jovens e imprimem um rumo à educação nacional. Afirmaram, ainda, que homens e mulheres da caserna representam modelos de disciplina e respeito a serem seguidos; que ter no espaço escolar modelos que inspiram disciplina, educação e perseverança é extremamente positivo; que a presença de militares na escola intimida a investida de criminosos e aliciadores de menores; que os alunos ficarão mais protegidos, os pais ficarão mais tranquilos e a sociedade ficará agradecida.

O aspecto positivo das escolas cívico-militares é que elas são ofertadas em caráter optativo. Chama a atenção também o interesse manifestado pelos civis em relação a elas. Entretanto, essas duas particularidades não as justificam em hipótese alguma. Aliás, inexistem alegações suficientemente sólidas e convincentes a favor da militarização do ensino civil. O modelo de educação destinado aos servidores fardados detém as peculiaridades necessárias exigidas pela profissão militar; portanto, não se aplicam aos civis. Observe-se inclusive que podem ser apresentados vários questionamentos à educação praticada nos colégios e academias das Forças Armadas. Entretanto, estas colocações não estão sendo apresentadas para manter um posicionamento adverso a qualquer tipo de colaboração oriunda das instituições bélicas. Ao contrário, é acreditável que as organizações castrenses encontram-se devidamente aparelhadas para oferecer contribuições importantes à educação básica. Julgamos certo que a ideia de sociedade educadora, a qual inclui o uso de múltiplos espaços pedagógicos, se apresenta como o melhor critério para decidir a respeito das possíveis propostas de parceria com a esfera militar.

Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea. Pós-Doutor em Educação pela USP e autor de "Democracia e Ensino Militar".

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