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Estudante em Curitiba corre para não perder o Enem.
Estudante em Curitiba corre para não perder o Enem.| Foto: Átila Alberti/Gazeta do Povo

Todo mundo reclama o tempo todo do Brasil que não funciona, que não deu certo, da bagunça etc. O modelo ideal das pessoas é a certinha Alemanha, havendo uma certa vergonha e recusa do modelo latino. Não se aceita o rotulo “latinos”, não se aceita que, em média, no sul do mundo e nos trópicos não há Alemanhas, e que as coisas sejam naturalmente menos certinhas.

Mas tem uma coisa aqui que funciona como na Alemanha: o portão do Enem. Que fecha inexoravelmente, sempre pontual. Não há chororô que adiante, não há reclamação que funcione. Além disso, o estoicismo e o bom humor brasileiro tira até onda dos atrasados do Enem. Gravam-se vídeos engraçados; tem gente que acorda cedo para fazer a prova e tem gente que acorda cedo para ir zoar os meninos que ficaram de fora. Ter empatia com os atrasados e ao mesmo tempo saber levar positivamente os problemas da vida é sinal de maturidade e de força.

Todo mundo aceita como um fato da vida: existe a lei da gravidade, as pessoas morrem e o portão do Enem fecha na hora exata

O portão fecha e todo mundo acha certo. A clássica “ah, mas a culpa não é minha!” não funciona, como se alguém estivesse falando de culpa! Muitos ainda precisam entender quem nem tudo é uma questão de culpa, mas que existem regras e ponto final.

A ideia segundo a qual “tenho o direito fazer a prova” também não funciona. Na verdade, nem passa pela cabeça de ninguém. Ninguém processa o Estado por isso, ninguém entra com recursos na Justiça. Todo mundo aceita como um fato da vida: existe a lei da gravidade, as pessoas morrem e o portão do Enem fecha na hora exata.

Agora, imagine o leitor o que aconteceria se a prova e o portão fossem de instituições privadas. Com o privado, as pessoas alegariam o “direito de fazer a prova”. Ninguém aceita que, na verdade, os únicos direitos que existem são o de o ente privado instituir suas próprias e regras, e o direito do consumidor de gostar ou não e mudar de provedor. O número de processos contra empresas privadas é altíssimo. Processa-se por qualquer coisa. Juristas e mídia incentivam todos a recorrer e fazer valer os próprios direitos, e a “judicialização das relações sociais” é celebrada sem discussão. Com o Estado somos bem mais lenientes e permissivos. Fortes com os fracos e fracos com os fortes.

Além disso, todos os portões do país têm de fechar ao mesmo tempo. E, para que todos os portões fechem ao mesmo tempo, a única maneira é que todos fechem exatamente pontuais. E talvez parte da aceitação de o portão fechar pontualmente esteja exatamente neste fato. Há algo de heroico no esforço comum, há muita virtude nos comportamentos regrados individuais, mas isso fica menos perceptível. Como se fôssemos incentivados a nos comportar bem quando somos obrigados a participar de um plano maior, de um plano nacional.

Existe o fato e existe a percepção. O fato é o portão fechar pontualmente; a percepção é de que isso está certo. Em parte, isso é sinal de eficiência, de regras bem estabelecidas e de justiça; em parte, é sinal de uma certa mentalidade estatista, planejadora, nacionalista, de súdito.

O dia em que tudo funcionar como o portão do Enem, o Brasil vai deslanchar. O portão do Enem é o Brasil que deu certo! E, se se reconhecesse o direito de o ente privado estabelecer as próprias regras, seria ainda melhor.

Adriano Gianturco é coordenador do curso de Relações Internacionais no Ibmec BH e autor da A ciência da política.

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