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No ano passado, minha mulher, Juju, foi convidada a participar de uma conferência em Paris e me convidou para ir junto. Como eu sempre quis visitar a cidade, claro que aceitei. Antes, porém, de comprar a passagem, precisava fazer umas pesquisas. Sou cego e uso um cão-guia – uma pastora alemã chamada Nadia – que me ajuda a andar por aí.

Primeiro, tive de descobrir qual a posição dos franceses em relação a esses animais, preocupação essa que tinha razão de ser. Em Nova York, onde a lei estipula explicitamente que os cães-guia podem acompanhar seus donos a todo lugar, eu vivo encontrando problemas – em restaurantes, táxis, parques, até hospitais. Não queria ir a Paris em férias só para arrumar as mesmas brigas que tinha perto de casa.

O resultado da minha pesquisa foi uma boa notícia: não só a França tem uma das leis de animais de serviço mais fortes do mundo como é também vigorosamente obedecida, com qualquer tipo de discriminação estritamente proibida. Fiquei nas nuvens. Além de poder vivenciar uma cidade que sempre quis visitar, também soube que minha guia seria recebida de braços abertos.

Os problemas começaram no momento em que chegamos a Paris. Bastou um olhar na nossa direção para o corretor da imobiliária que nos alugou o apartamento exigir 700 euros a mais de caução, além dos 500 euros já cobrados para uma “taxa de limpeza profunda” misteriosa. Senti como se tivesse levado um tapa – que doeu de verdade, principalmente depois das boas-vindas calorosas que eu tinha imaginado.

Não só a França tem uma das leis de animais de serviço mais fortes do mundo como é também vigorosamente obedecida

Puxa, ainda bem que discriminação é estritamente proibida, não é mesmo? Juju e eu ficamos furiosos, mas o que podíamos fazer? Nunca que encontraríamos outro apartamento no auge da temporada turística. Ficamos sem opção. Por isso, naquela tarde, peguei o metrô rumo a uma região meio distante, no 20.º Arrondissement, para procurar a sede da federação local de cães-guia e ver se alguém poderia me ajudar a resolver a questão com a imobiliária. Ao chegar, fui recebido pelo diretor, um homenzinho animado que apertou minha mão com vigor antes de me levar à sua sala atopetada. Ouviu com atenção minha descrição da briga com o corretor. Quando terminei, ele deu um suspiro profundo e começou a tamborilar os dedos na mesa.

“O senhor está absolutamente correto. Sem dúvida, é uma violação da lei francesa, mas a sua situação é meio... hã... complicada.”

“Por quê? A lei é clara ao afirmar que não se pode cobrar de uma pessoa cega com um cão-guia mais do que se cobraria de qualquer outra.”

“Exatamente. Só que a lei não se aplica ao senhor.”

“Por que não?”, perguntei, atônito.

“Porque a lei francesa se aplica apenas aos cães franceses.”

Cães franceses? O cara estava tirando uma com a minha cara? Que diabos significava “um cão francês”? Imaginei um cachorro com cara de tédio sentado à mesa na calçada de um café, boina na cabeça, um cigarro em uma pata, um copo de vinho na outra.

Nisso, o diretor interrompeu meu devaneio. “Mas acho que posso dar um jeito para o senhor”, disse em um sussurro de tom conspiratório.

“Ah, é? Como?”, eu quis saber.

“Posso fazer um cartão de identificação falso. Assim, enquanto estiverem aqui, o senhor e a Nadia serão franceses, e poderão desfrutar de todos os direitos que o país oferece – restaurantes, táxis, museus, o que for. Simples, não?”.

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Era óbvio que eu não estava pescando alguma coisa. Forjar uma identidade falsa para um cão não me parecia ser nada simples – mas sem esperar resposta, o diretor tirou uma foto minha e de Nadia e começou a batucar no teclado do computador.

Eu fiquei ali sentado, atônito, sorriso congelado no rosto, enquanto uma a uma, as ondas de déjà vu se quebravam sobre mim. Fui sentindo uma raiva surda, já familiar, crescendo no peito. Queria socar a mesa do diretor. Estava furioso não porque encarasse a deficiência visual como um problema; minha maior frustração vinha do fato de sempre haver alguém em posição de poder me dizer que eu não era adequado.

De repente me vi de volta ao tribunal do Brooklyn, para uma audiência pela guarda da minha filha, na qual ouvi do juiz que não poderia ver minha pequenina, de apenas um ano, sem a presença da mãe, “porque nenhum magistrado de bom senso deixaria um bebê com um cego”. Isso porque ele sabia que sempre fui o principal guardião da menina, desde que ela nascera.

Aí teve a audiência na imigração, para definir se Juju receberia ou não o green card. Enquanto um agente olhava as fotos do nosso casamento, impassível, eu fiquei ali, suando, repetindo na cabeça as últimas palavras do nosso advogado antes da sessão. Juju tinha grandes chances de conseguir o documento, pois era médica, tínhamos nos casado por amor, tínhamos idades e antecedentes compatíveis. O único “problema” no processo era a minha deficiência visual, que certamente seria motivo de desconfiança.

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Poderia mencionar uma infinidade de outros exemplos de discriminação que sofri ao longo dos anos, mas, naquele exato momento, o diretor bateu no meu ombro e me entregou minha nova identidade.

Voilà”, disse simplesmente.

De volta ao apartamento, fiz algumas piadas sobre a minha nova identidade francesa, mas por dentro não via graça nenhuma na coisa. Passamos o resto da semana indo a museus e restaurantes, mas com o coração na mão. Não consegui relaxar nem me divertir. Ter que usar o subterfúgio de um documento falso em todo lugar me deu a impressão de estar “livrando a cara”, o que me deixou cansado e irritadiço.

No aeroporto, já a caminho de casa, eu ainda estava bravo, não com os franceses ou com suas leis, mas porque esperava ser tratado com respeito na França e, em vez disso, encontrei o mesmíssimo problema com que me deparo em Nova York. É uma questão muito maior do que cães-guia, deficiência visual ou taxas de limpeza inesperadas. Mais uma vez eu senti o que significava ser parte de uma minoria – cego, negro, pobre, imigrante recém-chegado, não importa –, vivendo dia após dia com o medo constante de que tudo o que possui lhe seja tirado. Até sua identidade.

Adam Linn é escritor e vive em Nova York. Está trabalhando em seu livro de memórias, no qual conta como cresceu sem pai, a perda da visão e a experiência da paternidade.
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