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Imagem ilustrativa.| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

É princípio de Paulo Freire o de que o professor aprende com o aluno. O professor talvez aprenda ao preparar suas aulas, ao apreender substância que transmita ao aluno, ao capacitar-se para ensinar os pontos que lhe incumbem. O professor estuda em suas fontes: livros, artigos etc. O aluno não lhe é fonte de estudo, mas destinatário do que estudou e que lhe incumbe comunicar; neste sentido, ele não aprende com o aluno, mas este com ele.

O professor é-o porque sabe e porque transmite seu saber. Pode-se dizer que ele aprende com o aluno em sentido muito lato se, por exemplo, a pergunta ou a observação perspicaz do aluno chamar-lhe a atenção para aspecto em que não atentara (raridade), ou se o aluno apresentar monografia especialmente assinalável, por sua originalidade (outra raridade). As monografias e os trabalhos de conclusão de curso não se deputam a que o aluno produza conhecimento inviso, não constituem matéria que o professor ignore; ao contrário, dão-se à volta de temas que o professor conhece e que, por conhecer, avalia a produção do aluno. Em debates, algum aluno talvez profira modo de ver que o professor não previra e que, assim, descobre e “aprende”.

Em acepção latíssima, é aceitável dizer que o professor aprende com o aluno no sentido de que possivelmente aprimore sua relação humana no comércio com os instruendos: ouvir, entender, responder em conformidade com a pergunta, reexplicar por outra forma são expressões da arte de expor que o professor exerce e que “aprende” à medida que os alunos induzem-no a aperfeiçoá-la.

Na vida docente, dadas situações exigem atitudes do professor; à medida que elas se lhe apresentam e ele resolve-as, e porque se relacionam com seus alunos, ele “aprende” com eles. O professor exerce sua habilidade diplomática ao tratar com alunos problemáticos; ele destarte “aprende” (se é que “aprende”) o que os antigos chamavam prudência, saber fazer na vida de relação.

Na relação humana adquire-se experiência no trato com outrem, a exemplo de chefes, empregados, vizinhos, filhos, pais, irmãos, estranhos, colegas, amigos, inimigos, indiferentes, fregueses – pessoas com quem nos havemos, de que o aluno representa mais um tipo, dentre outros, não o principal nem o mais relevante.

Nas várias relações possíveis, “aprende-se” como acréscimo de experiência de vida e/ou profissional: é aprendizado em senso alargado, em que comumente se aprende a viver e a conviver à proporção em que tratamos com terceiros: genericamente, todos aprendemos com quem nos relacionamos, o que não inclui especialmente o professor em face do aluno.

O bordão de que o professor aprende com o aluno significa ser aquele suscetível de, com este, granjear experiência profissional e, com menor probabilidade, existencial. Tal aprendizado é de formação profissional e, talvez, pessoal, nos limites exiguíssimos da vida docente. Não é de conhecimentos nem é sobretudo nele que o professor forma-se como pessoa, não é especifica nem especialmente na interação com seus alunos que ele introjeta valores morais, princípios de vida, critérios de comportamento, discernimento, sabedoria, ainda que alguma que outra experiência sirva-lhe nesse sentido, máxime nos jovens, naturalmente menos experientes. O professor não se educa com seus alunos, mas já deve estar educado ao ingressar no magistério.

O acúmulo de experiências profissionais dá-se com maior volume em núper-professores: nos neófitos que principiam, verdes, sua carreira e que topam com situações que lhes são novas. Após dois ou três anos de exercício docente, por experiência própria ou alheia, por haver sido ator ou expectador de situações, o professor terá reunido sabedoria no trato com seus instruendos que antes lhe falecia, como, ademais, qualquer exercício profissional proporciona sabedoria prática, à proporção que a exercemos.

Mas “os alunos do ambiente X trazem sua experiência para a sala de aula e o professor descobre situações que desconhecia, pois seu modo de vida é outro”, “o lugar de fala do aluno enriquece o docente”. Ora, o ensino não consiste exclusiva nem principalmente na comunicação de experiências pessoais, senão, e majoritariamente, na de conteúdos programáticos. Conquanto alguns métodos pedagógicos ensejem a externização de modos de ver do aluno, sempre sua contribuição será mínima em cotejo com a que recebe do professor.

Pretender que o professor aprende com o aluno, com relação a conhecimentos, implica que o primeiro ignora e que o segundo sabe e comunica seu saber àquele; no atinente à sabedoria de vida, importa em amplificar demasiadamente situações possíveis, porém raras, apenas ocasionais, em que a relação com o aluno ou as manifestações deste edifiquem o professor como tal ou como pessoa. Diante do aluno deficiente, o professor sentirá (?) comiseração e empatia; em face do aluno pobríssimo, ele nutrirá (?) solidariedade; com o aluno problemático, pacientará (?); ao que o insultou, perdoará (?). São formas de edificação moral, de construção da pessoa humana que é o professor. Realmente é assim ou tal não passa de idealização artificial da realidade?

Certa pedagogia nega ao professor o papel de transmissor de conhecimentos e atribui-lhe o de mentor do aluno; entende professor e aluno equivalerem-se como humanos e, destarte, entre eles não há diferenças (o que é antropologicamente vero); que, assim como o professor ensina, também o aluno lhe ensina, na mutualidade de sua relação.

Por que o chavão é o de que o professor, especificamente ele, é quem aprende, e do aluno? Não se repete que o médico aprende com seus pacientes, o advogado com seus fregueses, o cozinheiro com seus comensais, ainda que adquiram experiência profissional e talvez de vida com eles. Somente se insiste nesse “aprendizado” quanto ao professor.

Conquanto professor e aluno sejam igualmente humanos, sua relação não é meramente humana, não é a de pessoas fora de sua recíproca condição pedagógica. Professor e aluno não se defrontam como indivíduos senão como professor e como aluno, quer a pedagogia docente volte-se a cumprir programas, quer se destine a despertar consciência crítica e a formar cidadãos progressistas (ou alunos conservadores).

O Brasil é dos países em que menos se prestigia o ofício docente, em que se é professor quase por falta de alternativa, em que o ensino superior (o que inclui cursos de Direito) é mercantil, em que os professores são mal pagos. É o contexto em que tal axioma vinga.

No Japão, todos prestam vênia ao imperador, exceto os professores: pode haver professores sem imperador, porém não há imperador sem professores. No Japão não se insiste em que o professor aprende com seus alunos, porém afirma-se que o imperador aprende com os professores. São espíritos distintos, com efeitos culturais e sociais correspondentes.

Por que respeitar, prestigiar, bem remunerar quem, afinal, aprende com a malta que lhe paga o salário? Já sequer necessitamos de professores: temos treinadores e influenciadores – destes, porém, não se apregoa que aprendam com seus pacientes, não obstante entre uns e outros haja relação igualmente humana.

E que pensar de faculdades cujos alunos dispõem de canal oficial em que, por escrito, avaliam seus professores com notas e com inteira liberdade de opinião e crítica, anônimas? Que pensar da moralidade e da legalidade do anonimato que permite a qualquer aluno assacar vilanias a seus professores, em veículo oficial, destinado ao superior do professor?

Não são coincidências. Não é fortuito que até em cursos de Direito se ensejem a denúncia e a calúnia anônimas, que se proclame a ensinança do aluno para o professor, que o Brasil já tradicionalmente ocupe os derradeiros lugares nos exames internacionais de estudantes, que entre nós haja ruim produção doutoral.

Se os professores adquirem experiência profissional e eventual e raramente vital no trato com seus alunos, estes com aqueles granjeiam conhecimentos programáticos, experiência em sua condição estudantil, e eventual e raramente experiência vital. A essência da relação pedagógica é a transmissão do conhecimento, do aguçamento do tirocínio, do treinamento de capacidades e o mais que se pretenda; não é a comunicação de sabedoria existencial de um para o outro, e, se tal se der, ocorre muito mais do agente para o paciente do que em sentido inverso.

O lugar-comum de que o professor aprende com o aluno é tolice.

Arthur Virmond de Lacerda Neto é mestre em História do Direito e autor de “Herança do direito romano” (no prelo).

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