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Foto de tanques fazendo a guarda da Praça da Paz Celestial, tirada em 6 de junho de 1989, dois dias após o massacre dos estudantes no mesmo local.
Foto de tanques fazendo a guarda da Praça da Paz Celestial, tirada em 6 de junho de 1989, dois dias após o massacre dos estudantes no mesmo local.| Foto: Manny Caneta/AFP

Descobri que eu era o criminoso mais perseguido da China enquanto cortavam meu cabelo, a bordo de um barco a vapor decrépito lotado no Rio Yang-Tse; de repente, uma voz estridente no alto-falante anunciou que o Departamento de Segurança Pública de Pequim tinha ordenado a prisão de 21 estudantes, acusados de instigar "rebeliões contrarrevolucionárias" na Praça da Paz Celestial. Meu nome encabeçava a lista.

Era junho de 1989, nove dias depois de as tropas do governo e veículos blindados terem se instalado no centro da capital, reprimindo violentamente os sete dias de manifestações pró-democráticas estudantis realizadas até então.

O anúncio me abalou. Sendo um dos principais organizadores dos protestos, eu estava fugindo das autoridades; não esperava que o terror de Pequim chegasse tão longe.

Tudo começou na noite de 17 de abril de 1989, quando alunos da Universidade de Pequim se reuniram para lamentar a morte de Hu Yaobang, antigo chefe do Partido Comunista que fora deposto por defender reformas no estilo ocidental. Alguns colegas de classe me instigaram a fazer um discurso porque eu organizara um "Salão da Democracia" no ano em que fui calouro.

Conforme comecei a falar sobre os problemas que o país enfrentava, minha inibição inicial desapareceu. Sugeri que marchássemos os 16 quilômetros até a Praça da Paz Celestial usando a morte de Hu como gancho para protestar contra a corrupção do governo e exigir reformas democráticas.

O governo chinês simplesmente apagou o massacre de seus livros de história

Centenas de jovens saíram do câmpus naquela noite e ocuparam a praça. Alunos de outras universidades se juntaram a nós e, mais tarde, membros de outros grupos da sociedade local. Num momento em que a China fazia a transição da era de Mao, o movimento deu esperança àqueles que tinham sede de mudança. A manifestação se espalhou por outras cidades.

Durante o protesto pacífico, fui eleito para a Federação Estudantil Autônoma de Pequim, que tentou engatar um diálogo com o governo; os líderes, porém, ignoraram nossos pedidos – e, vendo que nossa movimentação poderia enfraquecer a imagem do Partido Comunista, declararam lei marcial. As tropas cercaram a capital.

No dia 3 de junho, depois que minha proposta de retirada da praça fora rejeitada por outros membros da liderança estudantil, voltei para meu dormitório para descansar um pouco. Tarde da noite, amigos meus ligaram para dizer que os soldados tinham aberto fogo contra os manifestantes; entrei em choque. Nunca imaginamos que as autoridades teriam coragem de usar de força, uma vez que estávamos forçando o Partido Comunista a melhorar, e não a abdicar do poder.

Durante as semanas que passei escondido, vi na tevê meus colegas ativistas serem capturados, um a um. Decidi voltar a Pequim, mesmo sabendo que também seria detido. A polícia me encontrou em 2 de julho e me prendeu após uma perseguição. "Pegamos o pequeno Wang!", o policial até ligou para o chefe, empolgado.

Passei três anos e sete meses na cadeia, o coração quase sempre apertado pelas perdas e pela tristeza. Um grande número de estudantes e cidadãos comuns tinha sido morto durante a sangrenta operação repressiva e eu me sentia parcialmente responsável.

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Em 1993, quando a China se candidatou para sediar os Jogos Olímpicos, fui solto como prova de flexibilização política – mas voltei a ser preso, dois anos depois, e condenado a uma pena de 11 anos, por batalhar por apoio aos prisioneiros políticos e apoiar um abaixo-assinado que pedia ao governo que se desculpasse pelo massacre da Praça da Paz Celestial. Mais uma vez fui solto antes da hora, em 1998, em outro momento de afrouxamento político, pouco antes da visita de Bill Clinton à China. Depois disso, vim para os EUA e, desde então, nunca mais voltei à terra natal.

Nosso movimento fracassou, 30 anos atrás, porque não tínhamos apoio nem experiência suficientes para promover uma mudança democrática. Muitos de nós apostaram nas facções liberais da liderança do Partido Comunista para iniciar as alterações de dentro para fora, mas o fato é que superestimamos o poder dos membros mais velhos. O massacre destruiu nossas ilusões, ajudando-nos a ver a brutalidade do regime monopartidário chinês.

Nós, estudantes, não fomos os únicos ingênuos: alguns anos após a chacina, vários governos ocidentais suspenderam as sanções contra a China. A política de engajamento do Ocidente, baseada na esperança de que o comércio e os investimentos gerassem as mudanças democráticas, prevaleceu.

Só que, em vez de estimular a liberalização, a injeção de capital externo só fez engordar os bolsos dos líderes comunistas, dando-lhes poder para prolongar seu governo, silenciando os dissidentes no âmbito doméstico e aumentando sua influência no mundo.

Apesar do fracasso, acredito que nós, manifestantes, fizemos alguma diferença. A CNN transmitiu ao vivo o que aconteceu na Praça da Paz Celestial, e o governo chinês percebeu que já não poderia mais dizimar seus cidadãos sem que o mundo inteiro fosse testemunha. Conscientizamos o público para a democracia; muitos dos advogados e ativistas pelos direitos humanos que contestaram a legitimidade do Partido Comunista desde o massacre foram participantes ou defensores do movimento de 1989 – e hoje o Ocidente finalmente reconhece os perigos do totalitarismo chinês.

Meu desejo de levar a democracia ao meu país, apesar de parecer um sonho distante, continua intenso. O governo chinês simplesmente apagou o massacre de seus livros de história; a menor menção a ele nas redes sociais é considerada subversiva; mesmo assim, tento transmitir minhas experiências aos mais jovens. Quero manter as lembranças vivas.

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Os jovens na China de hoje, praticamente todos criados durante a política do filho único, são mais pragmáticos do que éramos nos anos 80 – e, apesar da lavagem cerebral do governo, sabem usar a tecnologia para obter informações de fora. Conhecem mais a respeito do Ocidente do que nós naquela época. Ao contrário dos estudantes da minha geração, que nutriam falsas esperanças pelo partido, a geração atual é mais cínica e realista. Assim que a oportunidade certa surgir, eles vão aproveitá-la, como fizemos há 30 anos.

Conforme se desenrola a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, vejo ali uma oportunidade ímpar de fazer da reforma política parte das negociações. Nos anos 90, quando Washington condicionou um status comercial mais favorável aos direitos humanos, o governo chinês assentiu, afrouxando o controle político e soltando vários dissidentes, eu inclusive; entretanto, assim que uma questão foi dissociada da outra, a situação se deteriorou drasticamente.

Hoje, os dissidentes são presos e forçados à confissão na tevê, em cadeia nacional; o governo monitora e censura as opiniões políticas dos jovens que estudam fora.

De uma forma perversa, a postura rígida de Donald Trump em relação a Pequim, apesar de imprevisível, está se mostrando eficaz; com essa guerra comercial, espero que Washington mostre à liderança chinesa que o Ocidente não vai tolerar o uso da tecnologia para espionagem e controle dos cidadãos comuns.

Trinta anos atrás, um movimento de vida curta me tornou conhecido, fazendo com que o estudante tímido e nerd que eu era se transformasse em um líder idealista e apaixonado de milhões de manifestantes. Por isso, paguei um preço alto: além de ter passado a maior parte da minha juventude atrás das grades, não posso voltar ao meu país, onde meus pais, já idosos e adoentados, vivem. Apesar disso, não me arrependo das minhas escolhas.

Wang Dan é o fundador e diretor do Dialogue China, um think tank em Washington que inicia pesquisas e atividades para promover reformas democráticas na China.

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