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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Uma ilha paradisíaca no Atlântico Sul, com as mais belas praias do estado do Paraná, um farol e uma fortaleza ricos em histórias, e incrivelmente localizados nos melhores pontos para registros fotográficos do Litoral. Com essa descrição de pouco mais de 30 palavras, boa parte dos paranaenses e muitos turistas do Brasil e outras partes do mundo provavelmente reconhece: é a Ilha do Mel! Localizada na entrada da Baía de Paranaguá, em frente aos balneários de Pontal do Paraná, ali se chega de barco e, com os pés, se explora as areias branco-acinzentadas das trilhas em meio à vegetação nativa, em busca de pequenos paraísos como a Gruta das Encantadas, as inúmeras praias, os monumentos históricos ou mesmo os deliciosos restaurantes, pousadas e bares que oferecem ao turista a oportunidade de desfrutar das suas maravilhas. Isso tudo o leitor conhece, ou pelo menos já ouviu falar!

É possível também que o leitor saiba que se trata de uma ilha do tamanho da famosa Fernando de Noronha, que quase toda sua a área é protegida por lei, que até há pouco tempo não havia energia elétrica, que um navio naufragou em 1868 e que existem lendas bem divertidas sobre a origem de seu nome. Talvez o leitor também saiba que existe muita gente na ilha – e fora dela – que vive do turismo ecológico. Que ainda persistem raros pescadores locais, e que pernoitar na ilha e ter o privilégio de ver o Cruzeiro do Sul, ouvindo a ausência do som dos motores de carro e sentindo a brisa do mar, é uma das experiências mais prazerosas de qualquer pessoa. Existe uma legião de frequentadores da ilha que sabe muito bem do que estou falando, e uma multidão que ainda quer ter a chance de saber!

Grupos econômicos fortes e governantes com visões imediatistas confrontam relatórios ambientais

Tudo isso parece muito, mas ainda não conta toda a história da Ilha do Mel, nem define quem ela realmente é. A Ilha do Mel é uma amostra de uma história geológica e biológica que ocorreu nos litorais Sul e Sudeste do Brasil nos últimos 40 mil a 50 mil anos e que resultou na formação das planícies litorâneas sobre as quais se debruçam restingas, florestas, lagoas, dunas, mangues e marismas. São espécies que, nos últimos 10 mil anos, desceram das montanhas da Mata Atlântica e, sobre as areias escaldantes do beira-mar, foram se modificando e adaptando. Algumas especiaram, ou seja, foram selecionadas no curso da evolução e se tornaram espécies únicas. Outras modificaram seu corpo, produziram órgãos para secretar o excesso de sal, tornaram-se mais rígidas e assim puderam ocupar as planícies inóspitas de areia do mar. Assim, essa região foi ficando muito diferenciada e passou a ser um sistema tão delicado e único que a própria fauna e flora da Mata Atlântica passaram a depender dessas restingas e áreas associadas. Só de plantas são mais de 1,5 mil espécies, e outras tantas de aves, mamíferos, répteis e insetos que passaram a habitar essas planícies litorâneas.

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, havia mais de 2 mil quilômetros de planícies costeiras densamente povoadas por plantas e animais únicos. Durante a colonização, mas principalmente nos últimos 100 anos, as planícies litorâneas foram sendo transformadas para atividades agrícolas, construção de cidades e sua infraestrutura, extração de areia, além da introdução de espécies exóticas e ameaçadoras à biodiversidade local. O progresso “exigiu”. De tudo o que havia, muito pouco sobrou. São menos de 40 pequeníssimas áreas de proteção integral que resguardam o que foi a biodiversidade e as belezas das planícies litorâneas brasileiras, de acordo com artigo publicado em 2015 na Revista Brasileira de Botânica. A Ilha do Mel é uma dessas áreas. Portanto, é um raro trecho do litoral brasileiro onde esta história de ocupação de espécies de plantas e animais únicos, que se adaptaram a um ambiente inóspito, ainda persiste sem efeitos drásticos do homem. A Ilha do Mel é única. Ela é o pouco que sobrou de um litoral brasileiro extremamente explorado e modificado.

Leia também: O trágico destino da Ilha do Mel (artigo de Emerson Antonio de Oliveira, publicado em 7 de outubro de 2016)

Leia também: O risco ambiental da expansão de áreas portuárias no Litoral (artigo de Elenise Sipinski, publicado em 30 de julho de 2016)

As mais recentes notícias sobre ela apontam para a possível construção de um complexo industrial, que inclui um porto em Pontal do Sul – ou seja, a poucos metros da ilha. Grupos econômicos fortes (e também envolvidos em alguns dos escândalos mais deprimentes da história presente do Brasil) e governantes com visões imediatistas confrontam os relatórios ambientais que impedem a construção e justificam: o progresso “exige”. Essa obra portuária está sendo feita a menos de cinco quilômetros de um dos maiores portos do Brasil, o Porto de Paranaguá. A obra deverá interferir na dinâmica do mar, na probabilidade de acidentes ambientais, na sobrevivência de peixes, botos e outros animais aquáticos, e na vegetação das restingas e manguezais. Deverá atingir as atividades de ecoturismo, a pesca e os modos de vida de muitos trabalhadores locais. Enfim, afetará a integralidade da Ilha do Mel. Logo ela, tão cheia de histórias de resistência. Logo ela, tão única.

Márcia C. M. Marques, membro da Rede de Especialistas de Conservação da Natureza, é professora da UFPR, vice-presidente da Associação Brasileira de Ciência Ecologia e Conservação (Abeco) e organizadora do livro “História Natural e Conservação da Ilha do Mel”.
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