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Não acredito em evolução social. Suspeito que andamos em círculos, indo pra lugar nenhum. Com isso não quero negar que “ganhamos algum terreno” em relação a situações desagradáveis aqui e ali (aumento de longevidade, eliminação em grande escala da escravidão e coisas semelhantes) nem que sejamos absolutamente dominados pela contingência cega.

Conseguimos controlar várias dimensões da vida. E são exatamente estas formas de controle que apontam para o “futuro da democracia”. A condição humana é tal que combatemos constantemente a contingência e a nós mesmos, em nossa infinita capacidade de criar sofrimentos. Mas a democracia, evidentemente, pode acabar um dia, inclusive pelas mãos de gente que a “defende”, principalmente porque o termo “democracia” pode significar coisas opostas.

Esta contradição é inerente ao processo modernizador

Quer ver um exemplo banal dessa “instabilidade semântica” do termo “democracia”? Tem partidos políticos por aí que pretendem, em nome da democracia, intervir na mídia para garantir igualdade de oportunidades, por exemplo, destruir pessoas e grupos na mídia para colocar seus parceiros ideológicos no lugar dessas pessoas e grupos. O argumento é “democratizar a mídia”.

Por outro lado, deixar a mídia inteiramente livre (portanto, democrática) pode significar, por exemplo, a geração de discursos de ódio e a exclusão social de quem não conseguiu alcançar a posição de trabalho num desses grandes grupos de mídia.

Independente dessa questão “escolástica” (se não conhecer o termo, olhe no Google), de onde está a verdadeira democracia na mídia e em outros níveis, acho que o futuro nos reserva a sociedade mais controladora que o mundo já viu e, portanto, num sentido comum do termo, menos democrática.

Dito de forma direta: marchamos para um mundo totalitário, com controle cada vez mais maior dos comportamentos, mesmo que pessoas trans possam ser o que quiserem (dou esse exemplo como mero clichê de “liberdade individual”) ou você possa ter o perfil que quiser no Face ou odiar livremente quem você quiser nas redes.

O modelo de sociedade do futuro está mais para o sistema de multas de trânsito atual do que para o debate sobre “o que é a verdadeira democracia”. O que é este sistema de multas de trânsito atual? Ele é o paradigma do controle em nome do “bem científico e social”. Existem quatro instâncias nesse sistema que fazem dele paradigmático da sociedade de controle do futuro.

A primeira é a participação do mercado faturando muita grana na venda de equipamentos de controle dos comportamentos. Empresas as mais variadas venderão equipamentos e formarão pessoal treinado para oferecer ao Estado e a sociedades esses “serviços”.

A segunda é a pesquisa e instalação cada vez maior de “inteligência algorítmica” no controle audiovisual e de localização espacial das pessoas, seus veículos e instrumentos cotidianos de uso. A medida que a pesquisa nessa área avançar, mais dinheiro se ganhará com o avanço técnico e efetivo do controle.

A terceira é o esquema gigantesco de arrecadação que isso significará para o Estado, em parceria com o mercado. Quando finalmente não dirigirmos acima de 50 km por hora, seremos obrigados a dirigir abaixo de 30 km por hora em toda parte. E assim até a imobilidade total...

A quarta é o ganho civilizador: a diminuição dos acidentes de trânsito. Não ache que esta é a menos importante. Pelo contrário, esta instância é a essencial em todo o paradigma. Ela é a razão “científica e social” da instalação crescente e inevitável do controle: a melhoria da qualidade do trânsito e, por tabela, da vida.

Esta contradição é inerente ao processo modernizador. Modernidade implica controle da contingência a serviço da melhoria da qualidade dos materiais e códigos envolvidos na vida em sociedade.

Controle de comportamentos, instituições, bens, menor custo e maior benefício nas transações. Dane-se o que quer dizer “a verdadeira democracia”. Eu apostaria que este será o nome de algum jogo idiota que pessoas com cabelos azuis e indefinição sexual jogarão nas redes.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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