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O silêncio inexplicável diante dos limites ao direito de ir e vir
| Foto: Divulgação/Polícia local

A pandemia do novo coronavírus ensejou variadas medidas sanitárias ao redor do mundo, a fim de evitar o contágio em larga escala, o que acarretaria perda de vidas e colapso do sistema de saúde. Antecipo que o presente artigo é predominantemente jurídico (mas sem “juridiquês”), alheio a debates políticos ou politiqueiros que envolvem as decisões das autoridades, mas direcionado ao cidadão que busca entender sob quais condições e em quais limites o Estado exerce o poder, visto que toda a sociedade está vinculada pela lei, e o poder (com os seus meios) está delimitado pelo Direito.

Em países democráticos, onde os governos locais são limitados pela sua Constituição e pela lei, diversas medidas foram adotadas, todas dependentes de prévia autorização constitucional e/ou legal. Obviamente, direitos e liberdades individuais são restringidos parcialmente, em maior ou menor grau, conforme a decisão nacional ou estadual (como no caso dos Estados Unidos e Brasil).

“Se queres conversar comigo, define primeiro os termos que usas”, advertia sabiamente Voltaire. Na discussão em tela, termos adotados em lei nem sempre representam a mesma significação em ordenamentos jurídicos diversos. Neste sentido, quarentena, isolamento, estado de emergência e estado de calamidade pública assumem acepções diversas e, se adotadas indiscriminadamente, podem levar a erro jornalistas que reproduzem matérias estrangeiras e todo o público que se encontra perdido entre discussões ineficazes.

Antes ainda do reconhecimento da pandemia pela OMS, o Ministério da Saúde deparou-se com a falta de regulamentação legal adequada no ordenamento juridico brasileiro para o combate de uma pandemia. Ou seja, as autoridades de todos os entes federativos (União, estados e municípios) não detinham meios explícitos e limitativos para sua atuação no âmbito sanitário. Assim assinalou o Ministro da Saúde ao presidente da República e ao Congresso Nacional, na exposição de motivos do Projeto de Lei 63/2020, que se transformaria na Lei 13.979/2020: “o anteprojeto de lei visa adequar a legislação interna, coordenando as ações e os serviços do SUS em todas as esferas federativas para permitir uma atuação eficiente e eficaz, mediante a definição de instrumentos que possibilitem o enfrentamento ágil da situação de emergência sanitária internacional existente, objetivando a proteção da coletividade, com maior segurança jurídica. Assim, apresentar um anteprojeto de lei que regulamente emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus no Brasil, articulando a proteção aos direitos humanos à adequação dos instrumentos de vigilância e atenção à saúde e aos requisitos do mundo atual, mostra-se, portanto, fundamental para que o Estado possa cumprir o seu dever constitucional de garantir o direito à saúde”.

Ora, a medida era necessária, visto que as futuras ações do Poder Executivo dependeriam de prévia autorização legal. Desta forma, os decretos posteriormente editados pelo presidente da República, pelos governadores e pelos prefeitos estão limitados pela Lei 13.979/2020, publicada em 6 de fevereiro para o combate do coronavírus. Os decretos executivos, como assentam Constituição Federal e Constituições estaduais, servem para a fiel execução das leis, regulamentando-as – premissa basilar em matéria de Direito Constitucional e Administrativo.

Como se depreende do texto escrito pelo ministro da Saúde, salientado acima, a lei, sob análise constitucional do presidente da República e do Congresso Nacional, sopesou, fez juízo de proporcionalidade entre as medidas sanitárias que visam à proteção das vidas e da coletividade e as liberdades individuais, de forma que as liberdades fossem restritas parcialmente, atentando-se à reserva das restrições de direitos exclusivas do estado de defesa e do estado de sítio. Na referida lei excepcional arrolaram-se, portanto, as medidas possíveis para o enfrentamento ao novo coronavírus, dentre as mais drásticas: o isolamento e a quarentena, que foram conceituados textualmente.

A quarentena, por exemplo, que se tornou palavra da moda, invariavelmente tem sido utilizada de forma errônea, seja por comparação estrangeira, seja pelo seu significado consagrado. Quarentena, para as autoridades públicas brasileiras, portanto, não é o seu conceito de dicionário, nem o que outras leis nacionais venham a delimitar, mas o que a lei brasileira diz que é quarentena. Autoridades públicas estão vinculadas à estrita legalidade. “Isolamento social”, inclusive, é expressão coloquial, injurídica, fomentada por órgãos estrangeiros, de conceito vago, que não existe na referida lei, que se refere apenas ao isolamento.

O artigo 2.º, nos seus incisos I e II, delimitou os conceitos de isolamento e quarentena. Assim, isolamento é “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”, e quarentena é a “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes ou de bagagens, contêineres, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”.

Ou seja, ambas as medidas permitidas na lei não autorizam que governadores e prefeitos, por meio de decreto, estabeleçam restrições integrais ou quase integrais à liberdade de ir e vir dos cidadãos, nem rastreamento de aparelhos celulares. Em verdade, as medidas de restrição de atividades, como fechamento do comércio e serviços considerados não essenciais, se mostram como medidas últimas aos governantes estaduais e municipais para levar a efeito chamado isolamento social, batizado pelo movimento “fique em casa”, buscando-se que, na falta de atrativos e de possibilidade de trabalho de grande parte da sociedade, ocorra o distanciamento de pessoas. A lei, portanto, traz conceitos definidos, impossibilitando que governadores e prefeitos, por meio de decreto, ultrapassem esses limites, muito menos que estipulem medidas reservadas ao estado de sítio, de prerrogativa exclusiva do presidente da República.

Aliás, ante tal realidade, a Ordem dos Advogados do Brasil, preocupada com a possibilidade de decretação de estado de sítio, em meados do último mês de março, posicionou-se pela inconstitucionalidade da decretação de tal medida, quando declarou: “Não há dúvida de que a situação atual produz sensações de pânico e de temor na população. Esses sentimentos não podem, no entanto, ser explorados para autorizar medidas repressivas e abusivas que fragilizem direitos e garantias constitucionais”. A OAB foi além e reconheceu a gravidade da pandemia do coronavírus, mas afirmou que as medidas adotadas pelas autoridades federais e estaduais, como a aprovação pelo Congresso do estado de calamidade pública (no caso a Lei 13.979/2020), permitindo a elevação das despesas públicas e a restrição de comércios e serviços em alguns estados, já se configuravam como ações apropriadas. Dito de outro modo, a OAB aclarou que os limites legais impostos às autoridades pela lei federal haviam respeitado o núcleo rígido das garantias constitucionais, das liberdades individuais, sem ultrapassar a via estreita do estado de sítio.

Veja, caro leitor, não adoto aqui qualquer posição – favorável ou contrária – relativamente ao isolamento ou distanciamento social, mas apenas demonstrando que tais medidas apenas podem ser recomendadas pelas autoridades públicas estaduais e municipais, clamando aos seus cidadãos que respeitem as indicações médicas e científicas para a diminuição de contágio. Todavia, decretos que tragam determinações de proibição de deslocamento, caminhadas, isto é, de liberdade de ir e vir, mostram-se flagrantemente inconstitucionais. Contudo, tais decretos gozam de presunção de constitucionalidade enquanto não atacados judicialmente, possibilitando abusos, inclusive prisões em flagrante, com base no artigo 268 do Código Penal, que prevê pena privativa de liberdade a quem infringir determinação do poder público destinada a impedir propagação de doença contagiosa.

Neste sentido, causa surpresa a omissão de autoridades públicas que fiscalizam os atos administrativos, em especial dos governadores, bem como da falta de enxurrada de ações de grande parte do universo juridico, que talvez, na ânsia recente de hiperbolizar direitos coletivos/sociais, possa ter esquecido dos direitos individuais, sem os quais não há sociedade livre, consciente e responsável. A própria Advocacia-Geral da União, órgão vinculado ao Poder Executivo federal, tem legitimidade para buscar junto ao Poder Judiciário a suspensão dos efeitos de tais disposições constantes nos decretos estaduais.

Outros imbróglios surgem a partir de terminologias que têm significado diferente entre os países. Por exemplo, em grande parte da Europa, o estado de emergência em muito difere do conceito nacional. Lá, o estado de emergência, decretado em muitos países pela primeira vez em sua história democrática, como em Portugal, se assemelha ao estado de defesa, possibilitando restrições de alguns direitos e liberdades. Saliente-se que o fato de grande parte dos países terem áreas diminutas e serem Estados unitários, e não federados como o Brasil, facilita a centralização e o acerto das decisões, tendo em vista as parcas diferenças regionais. No Brasil, por outro lado, o estado de emergência nem sequer constitui-se em estado de exceção, caracterizando-se pela iminência de danos à saúde e aos serviços públicos, quando os problemas ainda nem aconteceram. Agora, o Brasil, assim como seus estados, encontra-se em estado de calamidade pública, que também não se caracteriza como estado de exceção, mas busca basicamente permitir a contratação emergencial sem a realização de licitações e que as metais fiscais sejam ultrapassadas.

Além disso, comparações com governos estaduais norte-americanos também parecem levar a erro certos governadores, visto que o federalismo americano consagrado em sua Constituição consagra enorme autonomia aos estados federados, tratando-os como espécie de “semiestados soberanos”, ao contrário do Brasil, que para muitos constitucionalistas respeitáveis não adotou um federalismo substancial.

Por fim, têm razão aqueles cidadãos legitimamente preocupados com o respeito ao Estado de Direito, o qual prevê regras excepcionais para situações excepcionais, justamente a fim de evitar ímpetos autoritários sob a justificativa da excepcionalidade e do perigo da calamidade pública.

Bruno Carpes é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais.

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