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Em meio a acalorados debates, que vão da cátedra ao botequim, o mais novo capítulo acerca do adequado procedimento para se receber e processar denúncias com pedidos de impeachment da presidente da República deu-se, ainda que timidamente, nas premissas do cada vez mais badalado STF. Mas, afinal, o que foi decidido? O STF teria mesmo jogado um balde de água fria na possibilidade de impeachment, como os governistas querem crer e fazer crer? Ou, como alegam em sua maioria os oposicionistas, teria apenas indicado os caminhos constitucionais que levarão à inevitável derrocada da presidente?

A princípio isso pode parecer confuso; após uma análise sistemática das decisões proferidas pelo STF e da argumentação nelas presente, conclui-se que a única interpretação juridicamente legitima é a de que sim, estão suspensas todas as denúncias com pedido de impeachment protocoladas anteriormente ao dia 13 de outubro; no entanto, todas as outras denúncias que foram ou venham a ser protocoladas a partir daquela data e recebidas conforme procedimento previsto pela Lei 1.079/1950 não apenas podem como devem ser recebidas e tramitar no Congresso.

Adicione-se a isso que o recebimento e o trâmite de novas denúncias deverá ocorrer, inclusive, respeitando-se os prazos para cada ato e que não poderão extrapolar o tempo previsto em lei, pois denúncias de impeachment, independentemente do resultado que venham a ter, seja a manutenção ou a perda do mandato presidencial, não podem ser engavetadas.

A Lei 1.079/1950, popularmente conhecida como “lei do impeachment”, descreve os atos omissivos ou comissivos de presidente da República que podem ser caracterizados como crime de responsabilidade, bem como desenha o procedimento a ser adotado para a sua apuração. Dentro desse contexto, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) tem como função apenas estipular como o procedimento da Lei 1.079/1950 será aplicado pela Câmara dos Deputados, sem força para alterá-lo.

O episódio que resultou na entrada do STF se deu quando, em resposta à Questão de Ordem 105/2015 – dirigida ao presidente da Câmara para que ele saneasse dúvidas justamente sobre como o RICD aplicaria os procedimentos da Lei 1.079/1950 –, Eduardo Cunha oportunisticamente descreveu procedimento que não era o previsto em lei, introduzindo peculiaridades como a possibilidade de aditamento da denúncia e, mais gravemente, a diminuição do próprio quórum para o prosseguimento da denúncia e encaminhamento ao Senado, criando o que jocosamente vem sendo chamado de “procedimento Cunha de impeachment”.

Ao fazer isso, o presidente da Câmara descumpriu não apenas a Lei 1.079/1950, mas também o comando constitucional da reserva legal (art. 85, parágrafo único da Constituição), que dita que os crimes de responsabilidade cometidos pelo presidente da República serão definidos exclusivamente em lei especial, sendo que nem ao presidente da Câmara e nem à própria Câmara é franqueada a possibilidade de alteração desse procedimento.

O STF não engavetou o impeachment, mas engavetou, sim, o “procedimento Cunha”.

Diante da postura do presidente da Câmara em tentar alterar o procedimento de impeachment, três deputados foram ao STF. Em síntese, acusaram o presidente da Câmara de criar autocraticamente uma espécie de código próprio em desrespeito à Lei 1.079/1950 e ao comando constitucional da reserva legal. Dois dos procedimentos foram parar nas mãos da ministra Rosa Weber e um, nas mãos do ministro Teori Zavascki. Nos dias 12 e 13 foram disponibilizadas as três decisões monocráticas, e são duas dessas decisões (MS 33837 e Rcl 22124) que vêm causando frisson. Frisson este que só se justifica no âmbito político, pois juridicamente as decisões são inequívocas e acertadas.

Em primeiro lugar, os parlamentares requereram ao STF que determinasse a suspensão do decidido na Questão de Ordem 105/2015, que indicou procedimento diverso daquele previsto na Lei 1.079/2015, e a suspensão das denúncias tramitando conforme esse procedimento. Até aqui, tudo bem.

O problema vem com o segundo pedido, requerendo ao STF que determinasse que o presidente da Câmara se abstivesse de receber e analisar qualquer denúncia contra a presidente da República até o julgamento final dos procedimentos no STF (que nem sequer tem data para ocorrer). Ou seja, em patente violação à separação de poderes, pede-se para que o STF retire do Congresso por tempo indeterminado sua prerrogativa exclusiva e sua função constitucional de processar pedido de impeachment, mesmo que o pedido seja feito de acordo com o trâmite correto estabelecido pela Lei 1.079/1950.

O acatamento dos pedidos “secundários” pelo STF seria não apenas demonstração de desprezo pelas instituições democráticas, como seria o equivalente a retirar das mãos do Congresso o direito e o dever de se manifestar legitimamente acerca da questão política mais relevante da atualidade brasileira, e tudo isso diante da questionável assunção de que um presidente da República se sustentaria no cargo por meio de liminar concedida.

O STF, consciente tanto de seu dever de proteger a Constituição como de suas próprias limitações constitucionais, acatou apenas a primeira parte dos pedidos liminares, determinando a suspensão imediata do decidido pelo presidente da Câmara na QO 105/2015, bem como a suspensão das denúncias em trâmite sob a égide do “procedimento Cunha”.

Por outro lado, em respeito às competências institucionais de cada um dos três poderes, o STF não suspendeu o recebimento e processamento de novas denúncias e pedidos de impeachment que porventura venham a ser protocolados e processados de acordo com a Constituição e a Lei 1.079/1950: “defiro a liminar para suspender a eficácia da Resposta à Questão de Ordem n. 105, de 2015, bem como todos os procedimentos tendentes a sua execução, até o julgamento do mérito do presente mandado de segurança” (MS33837); “concedo a medida acauteladora para, nos moldes pretendidos, suspender os efeitos da decisão proferida pelo presidente da Câmara dos Deputados em resposta à Questão de Ordem n. 105/2015, bem como os atos que lhe são decorrentes, até o julgamento final da reclamação, e para determinar à autoridade reclamada que se abstenha de receber, analisar ou decidir qualquer denúncia ou recurso contra decisão de indeferimento de denúncia de crime de responsabilidade contra presidente da República com base naquilo em que inovado na resposta à questão de ordem 105/2015” (Rcl 22124).

Por isso reafirmamos que só existe uma interpretação legítima: enquanto todos os pedidos já protocolados e cujo andamento foi dado com base na QO 105/2015 estão indubitavelmente suspensos, o Congresso pode e deve receber e processar novas denúncias de impeachment desde que seu trâmite interno siga as diretrizes da Lei 1.079/1950, sendo vedado ao Congresso eximir-se deste dever.

Conclui-se, portanto, que o STF não engavetou o impeachment, mas engavetou, sim, o “procedimento Cunha”.

Apesar da clareza jurídica, perdeu o STF a oportunidade de pronunciar-se de forma mais completa e harmônica sobre tema tão polêmico. Ao optarem os ministros por proferir decisões tão econômicas em tema de tamanha relevância jurídico-social, deixaram de expressamente consignar o óbvio: que as liminares foram concedidas de forma parcial, pois concederam apenas a primeira parte dos pedidos; e que eventuais denúncias recebidas e processadas conforme Lei 1.079/1950 devem ter seu trâmite regular, sendo vedado ao Congresso que não dê o devido andamento.

Sabedor de que essas decisões seriam e ainda serão lidas ao sabor de conveniências políticas e pessoais, pecou o STF em ser demasiadamente sintético, permitindo a distorção do escopo de suas decisões e o surgimento do despótico rumor de que a própria figura do impeachment teria sido “engavetada”.

O que nos resta é garantir que essa falta de sensibilidade do STF não resulte em nuvem de desinformação capaz de forjar, no contexto político atual, ferramentas necessárias para usurpar do Congresso sua legítima competência para processar denúncias de impeachment, fato que, para além de posicionamentos políticos pessoais, não se pode admitir, pois um Estado que torna a figura de seu presidente inalcançável é um Estado que deixa de ser democrático.

Marina Toth, é advogada criminalista e mestre em Direito pela Universidade de Michigan.
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