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O STF está promovendo uma revolução cultural?
| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

“O conceito de entidade familiar não pode deixar de fora a união entre pessoas do mesmo sexo”, voltou a afirmar o plenário do STF, por unanimidade, ao julgar a inconstitucionalidade da Lei Distrital 6.160/18, que estabelece as políticas públicas de valorização da família no Distrito Federal.

No artigo 2.º, a aludida lei define, como entidade familiar, “o núcleo social formado pela união de um homem e uma mulher, por meio do casamento ou união estável”. A regra, como diz Arnaldo Cezar Coelho, é clara: homem e mulher, e não homem e homem ou mulher e mulher.

E, mesmo sendo clara, ainda assim a norma comporta algum nível interpretavivo. Não pretendo, aqui, criticar o estrito teor da decisão final, mas tão somente o pernicioso fenômeno que a sustenta: o ativismo judicial, uma forma bem silenciosa de revolução cultural.

Atuar juridicamente é sempre interpretar. Por isso, costumo dizer que os juízes são, muito antes de profissionais do ramo jurídico, intérpretes do direito. Obviamente, há interpretações e interpretações. Hoje, estão em voga aquelas “achadas na rua” e aquelas tomadas a partir de puros “entes de razão ideológica”.

Ambas não partem de um dado bem concreto, isto é, do texto da lei, dimensionado prudencialmente em seu sentido e alcance rumo ao justo concreto. No fundo, são concretizações lógicas desta ou daquela cartilha politicamente correta e chanceladas judicialmente.

O STF tem muitos e importantes papéis, mas rasga seu principal script quando resolve revolucionar culturalmente a realidade social sem base no texto constitucional

Sabemos que a maior parte da existência humana é voltada para uma certa práxis. Diariamente, estamos a exercitar a economia da deliberação. Escolhemos isso e não aquilo. Em suma, discriminamos a todo tempo e, algumas vezes, discriminamos injustamente.

O Direito, com um saber prático, encerra toda uma atividade existencial que capta e conforma, por sua vez, umas exigências objetivas de justiça, determinando-as aqui e agora. Positivar o direito é estar disposto a conhecer uma verdade prática, inevitavelmente por se fazer.

O problema dessa tarefa interpretativa da realidade posta está em buscar as chaves de interpretação dessa mesma realidade num direito “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”. No primeiro caso, a democracia vai parar na sarjeta e, no segundo, num mundo irreal.

Como uma espécie de tributo que o erro dessas chaves presta ao acerto, para que não terminem num beco sem saída, elas sempre passam a recorrer a artifícios procedimentais, consensuais, sociológicos ou dialógicos para intentar uma justificação das realidades jurídicas.

Contudo, a aporia permanece, pois a leitura feita acaba por reproduzir um reducionismo interpretativo e, assim, adentramos numa dimensão em que tudo se resume a uma mera tarefa hermenêutica. Tudo passa a ser interpretação, sem que fique bem claro qual é o objeto referencial dessa tarefa, isto é, qual é a realidade que, ao cabo, interpreta-se.

Nessa perspectiva, o cidadão olha para o Direito e o vê rodeado de interpretações, que o são, por sua vez, leituras de outras interpretações e, assim sucessivamente, numa espécie de “interpretacionismo” universal e infinito, que acaba – como ocorre com todos os raciocínios induzidos ao infinito – por não justificar racionalmente nada.

Não dá para se viver dessa maneira. Alguém precisa dar a palavra final e esperamos que essa palavra respeite o referente real. Na tradição jurídica ocidental, esse ente atende pelo nome de corte constitucional. Inserida nesse desafio, a tentação para seus juízes recai no afã de se pretender assumir o papel de constituinte originário, e isso é chamado de ativismo judicial.

Nessa ideia, alimentada por sulfúrica panfletagem acadêmica a respeito, o magistrado incorpora uma função legislativa daquilo que acredita ser o bem comum historicamente situado e, nas hipóteses mais patológicas, professa um messianismo judicial, porque crê estar antevendo, por um juízo estritamente particular, “achado na rua” ou a partir de “entes de razão ideológica”, aquilo que é próprio da deliberação política parlamentar, onde o juízo final é formado pelo entrechoque prudencial das opiniões dos legisladores.

O efeito concreto para o cidadão será o da imposição, ainda que procedimentalmente legítima, de uma interpretação que pode não ser a melhor e sob o manto de uma decisão judicial. Mas esse manto é diáfano e, por isso, posso observar, em regra, a partir da carência da intermediação de um processo legislativo ou da imposição ideológica de um projeto escatológico existencial, toda sua fragilidade intrínseca. Num e noutro caso, a democracia cessa e, se um juiz se diz “pela democracia”, então, resolveu inovar semanticamente.

Um juiz que assume o papel parlamentar (que interpreta os anseios sociais) e iluminista (que promove “avanços civilizatórios”) empurra a história na direção do “progresso social”, ainda que contra a vontade da maioria, pois já não se preocupa mais com a separação tripartite dos poderes, um dos mecanismos de contenção do arbítrio do Leviatã estatal. Scalia lembrava que a ascensão do ativismo judicial é o ocaso da democracia representativa.

Esse juiz avoca o poder de tomar a indeterminação do conteúdo dos direitos fundamentais para, vencendo as fronteiras do direito ordinário, subsumi-lo diretamente aos casos postos à sua apreciação, sujeito a toda ordem de paixões e imprimindo, na solução do caso, valores “achados na rua” ou tomados a partir de “entes de razão ideológica”, atuando, assim, como um agente cultural revolucionário.

Então, teremos ingressado no mundo da autocracia formada pelas notáveis cabeças de um colegiado de togados letrados. Respondo à pergunta lançada no título. O STF tem muitos e importantes papéis, mas rasga seu principal script quando resolve revolucionar culturalmente a realidade social sem base no texto constitucional, porque, ao cabo, torna-se um deus ex machina e, a partir da palavra – ignorando o barro da coisa em si –, cria um novo homem.

André Gonçalves Fernandes é professor-coordenador do CEU Law School e pesquisador da Unicamp, com pós-doutorado em Filosofia e História da Educação.

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