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No momento em que o lugar do Islã no mundo moderno é uma questão de contenção global, Brunei, uma pequena monarquia no Sudeste Asiático, oferece sua contribuição: a partir de três de abril, nessa nação predominantemente muçulmana, entrou em vigor o novo código penal que inclui punições físicas severas. De acordo com a nova lei, os homens gays ou adúlteros podem ser apedrejados até a morte, e as lésbicas, receber chibatadas. Os ladrões vão primeiro perder a mão direita e, a seguir, o pé esquerdo.

Compreensivelmente, essa notícia gerou protestos da ONU, das organizações de direitos humanos e de celebridades como George Clooney; por sua vez, o governo bruneano ignorou as críticas, lembrando ao mundo que é um país “soberano” e “como toda nação independente, aplica suas próprias leis”.

Como muçulmano, devo primeiro dizer aos meus correligionários bruneínos que esse argumento não é lá muito bom. É claro que cada país define e aplica sua própria legislação, mas o conteúdo dela não é imune a críticas quando viola os direitos humanos. Do contrário, não teríamos base nenhuma para denunciar a perseguição totalitária dos uigures na China, ou as proibições nada liberais de “símbolos religiosos”, incluindo o véu de cabeça islâmico na França e, mais recentemente, em Quebec.

Entretanto, o ponto aqui não é Brunei; é a lei islâmica, ou charia, o código penal que é a base não só no país em questão, mas em pelo menos uma dúzia de outras nações como a Arábia Saudita, o Irã e o Sudão. Inclui punições físicas brutais que chocam o resto do mundo, além de criminalizar atos que de criminosos nada têm, como o sexo consensual, a perda da fé no Islã (“apostasia”) e o direito de criticá-lo (“blasfêmia”).

Os muçulmanos que insistem em manter ou reviver essas medidas têm uma lógica simplista: a charia é a lei de Deus e obedecer a ela é um dever religioso. Mas seu literalismo é errado por três motivos.

Grande parte da charia na verdade foi criada pelos homens

Primeiro, as penalidades físicas mencionadas no Corão – a amputação de membros e o açoitamento – talvez estejam simplesmente relacionadas ao contexto do livro. Na Arábia do século 7, onde viveu o profeta Maomé, não havia prisões para encarcerar e alimentar as pessoas por longos períodos; pela mesma razão, as punições corporais, muito mais baratas e fáceis, eram a norma universal até uns séculos atrás. A Bíblia hebraica exorta sua prática, como também as leis europeias pré-modernas.

Em segundo lugar, grande parte da charia na verdade foi criada pelos homens. Estudiosos islâmicos expandiram a jurisprudência baseados nos relatos discutíveis sobre as palavras e ações do profeta, bem como as normas da época. Foi assim que a blasfêmia, a apostasia e a embriaguez se tornaram crimes, ainda que nenhuma dessas atitudes seja penalizada no Corão.

Em terceiro, a jurisprudência islâmica foi desenvolvida somente para muçulmanos, uma vez que cristãos e judeus tinham suas leis próprias, mas todos os Estados modernos, incluindo Brunei, são centralizados e diversos – ou seja, impor a charia como lei local absoluta não só fere os direitos das minorias como os dos muçulmanos não ortodoxos.

Todos esses argumentos são elaborados, de forma persuasiva, por pensadores reformistas, mas duvido que as autoridades conservadoras de Brunei os levem em consideração. Assim sendo, vou pedir que reflitam sobre uma autoridade que elas não podem ignorar com tanta facilidade: o Império Otomano, última superpotência islâmica do mundo e último califado sunita.

Leia também: Causas e soluções para o terrorismo islâmico (artigo de Marcelo Brandão Cipolla, publicado em 3 de julho de 2018)

Leia também: Estado, islã e mudanças sociais (artigo de Andréa Benetti, publicado em 2 de abril de 2017)

Os otomanos, que seguiam a escola Hanafi de jurisprudência, desde o início foram pragmáticos em matéria de legislação. Assim, os decretos dos sultões introduziram as multas e condenações à prisão em vez de castigos físicos, fazendo com que estes acabassem se tornando obsoletos.

Além disso, em meados do século 19 iniciaram uma grande era de Reforma (ou “Tanzimat”), inclusive com a criação do Código Penal Imperial de 1858. Inspirado na lei francesa, foi criado para ser aplicado a todos os seus cidadãos, independentemente de religião, e continuou válido até o fim do império, com algumas modificações, substituindo as punições corporais restantes por penas prisionais ou trabalhos forçados. Também descriminalizou a apostasia e penalizou a blasfêmia, ou “a interferência com privilégios religiosos”, apenas com “aprisionamento de uma semana a três meses” (Artigo 132).

Vale também dar uma olhada na seção de crimes sexuais do código, uma vez que é mais liberal que a maioria das leis implementadas em Brunei 161 anos depois.

Segundo o Artigo 200, por exemplo, “um ato abominável com uma garota que ainda não seja casada com um homem” era crime... mas somente quando realizado “à força”. Em outras palavras, sexo pré-marital consensual não era criminoso.

Rodrigo Constantino: Não dá para tolerar o Islã radical (publicado em 21 de dezembro de 2016)

Leia também: O terror justificado do Islã (artigo de Fábio Blanco, publicado em 28 de março de 2016)

O sexo fora do casamento, ou adultério, sim, pelo menos segundo o Artigo 201, mas deveria ser punido com a prisão “de três meses a dois anos”, e não apedrejamento até a morte.

E a homossexualidade? A lei otomana não menciona nada a respeito. John Bucknill e Haig Utidjian, que a traduziram para o inglês em 1913, comentaram: “Observa-se que, a menos que praticada à força ou com menor de idade, a sodomia não é um ato criminoso de acordo com o Código Penal Otomano.”

Enquanto reinaram, os otomanos puderam fazer essas reformas porque, embora se mantivessem fiéis ao Islã, também entendiam que administrar um império exige flexibilidade, pragmatismo e tolerância. Infelizmente, após sua queda catastrófica na Primeira Guerra Mundial, o Oriente Médio muçulmano foi dominado por colonizadores europeus e secularistas autoritários que, por sua vez, sofreram retaliação de islamitas autoritários, cuja vingança incluiu o ressurgimento da versão mais rígida da religião.

A sanha de restabelecer a charia, em sua forma mais arcaica e literal, é a base da ressurgência islamita, que parece estar ganhando espaço hoje em Brunei. Contra ela, nós, os muçulmanos mais liberais, geralmente citamos os valores universais e as teologias mais racionais – mas também podemos nos referir ao último califado de verdade do planeta, que era muito mais refinado do que o dos fanáticos que surgiram com sua ausência.

Mustafa Akyol é especialista em Islã e modernidade do Instituto Cato e autor, mais recentemente, do livro “The Islamic Jesus”.
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