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Esta semana, o Breitbart News exibiu o vídeo de uma das reuniões semanais informais do Google, no qual funcionários e a liderança têm altas discussões sobre tudo, desde a instalação de máquinas de salgadinhos mais saudáveis à eleição de Donald Trump.

O site de direita descreveu as imagens, feitas em 2016, como “prova irrefutável”, já que mostrava Sergey Brin, um dos fundadores, dizendo a quem quisesse ouvir o que achava do novo líder do mundo livre.

Spoiler: não é nada bom.

“Sendo imigrante e refugiado, sem dúvida acho essa eleição duplamente ofensiva, e sei que muitos de vocês pensam da mesma forma. Entramos em um período muito estressante, que se choca com muitos dos nossos valores”, disse ele, em sua voz atonal e anasalada. Dava para ver que estava abalado, como também estavam outros executivos do alto escalão da empresa ao seu lado no palco.

Os conservadores que vêm espalhando boatos de que as empresas responsáveis pelas redes sociais “oprimem” suas opiniões – tecla em que o próprio Trump vem batendo ultimamente – usaram o vídeo como prova da parcialidade do Google. Acontece que não deveria ser surpresa para ninguém a descoberta de que Brin, um exilado russo que fundou uma das empresas mais peculiares do planeta, não é fã do presidente.

Respondendo ao ataque sobre suas intenções, a porta-voz da empresa disse: “Nada que foi dito naquela reunião, ou em qualquer outra, sugere que qualquer parcialidade política jamais tenha influenciado a maneira com que criamos e operamos nossos produtos.”

Acontece que não deveria ser surpresa para ninguém a descoberta de que Brin, um exilado russo que fundou uma das empresas mais peculiares do planeta, não é fã do presidente

Blá blá blá. Não quero parecer arrogante, mas fico admirada ao ver a importância dada a esse escândalo ridículo quando uma questão muito mais importante envolvendo o Google e a censura tem sido praticamente ignorada pelo público e por Washington.

Estou falando do fato de a companhia estar pensando em retornar ao mercado chinês depois de abandoná-lo, com uma indignação muito justa, menos de dez anos atrás. Há relatos de que vá voltar a oferecer uma gama de serviços naquele país, incluindo uma versão censurada da ferramenta de busca.

Uma porta-voz da empresa me disse que a iniciativa controversa, que ganhou o codinome Dragonfly, é “exploratória” e que o Google não está “nem perto de lançar uma ferramenta de busca na China”. O mais interessante é que a maior parte da indignação com a possibilidade parece vir dos próprios funcionários, que deixaram bem claras suas fortes objeções, e não tanto de fora.

Para quem não sabe da história, o Google começou a operar na China em 2000 e, em 2005, Kai-Fu Lee, na época executivo da Microsoft, foi contratado para dirigir a operação ali. Em 2009, o Google tinha mais de 36% de participação de mercado e atendia a milhões de usuários chineses no continente.

Oferecia uma versão truncada de uma ferramenta de busca, que incluía o seguinte aviso no rodapé da página inicial: “Alguns resultados foram omitidos devido a restrições governamentais.” A justificativa do conglomerado para estar na China era a de que levar informação para um povo tão carente de conhecimento seria uma coisa boa.

Leia também: A tecnologia é má? (artigo de David Brooks, publicado em 4 de dezembro de 2017)

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“Pelo menos os usuários sabiam o que estavam perdendo”, me explicou recentemente a ex-advogada do Google, Nicole Wong, em meu podcast.

A intenção era a de que um maior volume de informações ajudasse a diminuir a repressão governamental. Não foi o que aconteceu.

Em 2010, o Google dava mostras de cansaço com a repressão cada vez mais severa e as intrusões em seus sistemas de hackers com aval público. Depois de um longo debate, a empresa se mudou para Hong Kong, com uma oferta livre de censura, e acabou saindo de vez do mercado chinês. “Nossa objeção é contra as forças totalitárias”, afirmou Brin na época. E também escreveu em sua página no Google Plus: “A principal ameaça à liberdade da internet é, sem dúvida, a filtragem governamental da dissensão política.” Essa rejeição à censura foi uma atitude ousada, diferenciando o Google de outras empresas, como a Apple, que se comprometera com o governo chinês para poder fazer negócios em seu território.

Voltando aos dias de hoje, vemos o Google sendo falsamente acusado de censurar o discurso nos EUA, quando na verdade está pensando em se engajar novamente com a censura chinesa.

Essa informação o faz parar para pensar? Deveria mesmo. E os políticos em Washington deveriam canalizar sua dissimulação para a questão da China, que é a que realmente merece ser escarafunchada. Talvez essa tenha sido a verdadeira razão por que o Google evitou mandar seu atual CEO, Sundar Pichai, para depor no Senado – para não ter que explicar onde estavam com a cabeça ao lançar a China 2.0: Agora com 100% mais hipocrisia.

A empresa parece não ter o mínimo pudor em descer do pedestal de sua superioridade moral para ir buscar o que lhe interessa na China.

Que é o que pode se resumir em duas palavras: mais dados.

A empresa parece não ter o mínimo pudor em descer do pedestal de sua superioridade moral para ir buscar o que lhe interessa na China

Foi o que Wong e Lee, com quem também fiz uma entrevista esta semana, me sugeriram como principal motivo para a decisão.

Em seu novo livro, AI Superpowers: China, Silicon Valley, and the New World Order, Lee alega que só aqueles que tiverem condição de manipular um volume cada vez maior de dados se beneficiarão dos avanços na IA – que é o futuro da computação.

E diz que, no momento, com o uso agressivo por parte do governo de sensores e uma política do tipo, “você diz que é reconhecimento facial, eu digo que é vigilância”, uma população engajada muito mais significativamente ao celular do que a dos EUA e consumidores mais dispostos a trocar a privacidade pela conveniência digital, as empresas de internet chinesas têm de dez a quinze vezes mais dados que as norte-americanas. Lee e outros se referem a uma “discrepância de dados” que o Google tem de resolver, e logo, se quiser se manter competitivo.

“Você sempre quer mais dados, tantos mais quanto puder obter”, diz Lee. E observa que, ainda que a empresa tente reforçar o efeito libertador, mesmo que recupere apenas 20% daquele mercado, o que isso representa em volume de informações é essencial para sua competitividade.

Wong concorda, completando: “Não agir dessa forma pode implicar em deixar a China em vantagem na próxima era computacional.”

“Para desenvolver uma inteligência artificial realmente robusta é preciso muitos dados. E se você tem um governo autoritário que resolve, de repente, adotar o reconhecimento facial, então esse volume vai inchar de uma hora para a outra. Se for nos EUA, na Europa, ou outro lugar, é preciso haver permissão para isso, que pode ser retirada. Há todo tipo de empecilho para a coleta de dados, o que significa que o ritmo é mais lento. Isso não me incomoda nem um pouco, a não ser pelo fato que a China tem condições de usar uma tecnologia que prevalecerá se conseguir chegar lá primeiro”, explica ela.

Leia também: A tecnologia, a Internet e a perda de privacidade (artigo de Fernando Matesco, publicado em 30 de maio de 2018)

Leia também: Um robô vai tomar seu emprego? (artigo de Mateus Azevedo, publicado em 13 de setembro de 2018)

Outras fontes a par da situação dizem que a questão nem é tanto pelos dados, mas sim pelo desperdício de uma oportunidade lucrativa de negócios. Seja o que for, essas preocupações mercenárias são exatamente as mesmas que pareciam incomodar o Google da primeira vez que esteve na China. Dada a mudança, gostaria que a companhia usasse as tais reuniões tumultuadas e explícitas para explicar direitinho aos seus funcionários, usuários e reguladores o que está disposta a trocar por esse retorno.

E gostaria especialmente de ouvir o que Brin tem a dizer, apesar de não estar mais envolvido no dia a dia do Google. Seu relativo silêncio sobre o assunto, especialmente quando ele geralmente tem algo a dizer sobre tudo, é, no mínimo, interessante.

Sem dúvida, é drasticamente diferente do que escreveu, com grande emoção, em 2012, ao deixar a China: “Independentemente da minha opinião sobre os ecossistemas digitais ou sobre o Google, por favor não permitam que a internet aberta e soberana se submeta à intervenção do governo. Enquanto o fluxo livre de informações ameaçar os poderosos, eles vão querer suprimi-lo.”

Belas palavras, Sr. Brin. Pode repeti-las.

Kara Swisher é jornalista especializada em tecnologia.
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