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Aqueles que querem a censura imaginam que há uma linha reta entre o que está na obra e os efeitos sobre o espectador. Se assim fosse, os filmes de Leni Riefenstahl nos teriam tornado nazistas ou os de Eisenstein nos teriam levado à revolução

A proibição do filme sérvio A Serbian Film - Terror Sem Limites, de Srdjan Spasojevic, trouxe de volta algumas questões relativas à censura à arte. O DEM, sem ver o filme, alega que ele contém cenas de pedofilia e por isso deve ser interditado. É importante que se diga que no filme em questão nenhuma criança foi exposta a qualquer situação que a aviltasse. Com a classificação etária de 18 anos feita pelo Ministério da Justiça, o filme continua interditado apenas no Rio de Janeiro.

Dois argumentos são utilizados para justificar a proibição. O primeiro parte do princípio de que alguns – o Estado, o DEM, a Justiça – sabem julgar quais são as boas imagens para a sociedade. Esse princípio é exposto com clareza nas palavras da desembargadora que julgou o caso: "Não se pode admitir e permitir que, em nome da liberdade de expressão, cenas de extrema violência física e moral, inclusive, utilizando recém-natos, sejam levadas ao grande público, vez que possam provocar reações adversas, às vezes em cadeia, em pessoas sem equilíbrio emocional e psíquico adequado para suportar tais evidências de desumanidade".

A desembargadora utiliza uma estratégia cara a todas as censuras. Parte-se da falta de democracia dizendo que uns sabem julgar e outros são fracos e incapazes. No Brasil, nos anos 20, por exemplo, essa incapacidade não era apenas das crianças, como hoje entendemos ser o bom senso, mas também estendida às mulheres. Como sabemos, se partimos da falta de democracia, ela não virá mais à frente. Diante dessa disparidade entre cidadãos pleiteada pela desembargadora e pelo DEM, preocupa a naturalização de um discurso que diz que alguns devem falar em nome de valores superiores – família, moral, religião – para julgarem que tipo de arte deve ou não ser feita. Com argumentos como esse, toda censura se torna possível.

O segundo argumento diz que a proibição visa respeitar a dignidade do ser humano e ser contra a promoção de práticas de pedofilia. E, para sustentar tal argumento, basta, segundo o DEM e seus advogados, a simples inclusão de uma cena de pedofilia em um filme, como se o cinema não tivesse estratégias para representar eventos sem efetivá-los. Dentro dessa lógica, nenhum filme em que há a representação de um crime seria permitido.

Na Constituição brasileira a noção de arte é amplamente contemplada e no inciso IX do artigo 5.º lemos o seguinte: "É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Nossa Constituição explicita o óbvio dentro de um regime contemporâneo das imagens. Existem as imagens que fazem parte da arte e aquelas que não. O que significa estar no campo artístico? Antes de tudo: arte não é informação, logo, ela não pode ser entendida como discurso. Um filme em que um deputado faz um discurso homofóbico não pode ser julgado como julgaríamos um deputado que faz um discurso homofóbico, simples assim. Há uma diferença de inscrição e o apagamento dessas diferenças – do que está no campo da arte e do que não está – serve enormemente a todas as práticas de censura.

Um recente caso aconteceu na Bienal de São Paulo. O artista plástico Gil Vicente produziu a obra Inimigos, em que ele se autorrepresentava em desenhos com um revólver apontado para a cabeça de líderes como Lula e o Papa. Pautado justamente pela incapacidade de sair do registro do discurso e entrar no da arte, o presidente da OAB-SP, Luís Flávio D’Urso, fez a seguinte declaração: "Estas obras estimulam e insuflam o assassinato do presidente da República". Ao que parece não havia humor nessa fala. Como vemos, estamos diante do mesmo caso em que fica explícito um verdadeiro obscurantismo em relação ao estatuto da imagem da obra de arte.

Aqueles que querem a censura imaginam que há uma linha reta entre o que está na obra e os efeitos sobre o espectador. Se assim fosse, os filmes de Leni Riefenstahl nos teriam tornado nazistas ou os de Eisenstein nos teriam levado à revolução. A arte não faz os homens, pelo menos não dentro dessa relação de causa e efeito. A obra de arte é em si um objeto problemático que perturba os saberes constituídos, muito mais que os reforça, mas, para isso, é preciso que respeitemos a dificuldade de transformar em discurso o que é um problema estético.

O obscurantismo elitista que permeia e justifica a proibição desse filme é preocupante. Ao aceitarmos a censura estamos autorizando um gesto essencialmente antidemocrático que se apropria de um assunto seriíssimo para garantir seu lugar de classe, com todas as consequências desse gesto.

Todas as informações sobre o caso podem ser vistas no blog www.censuranao.wordpress.com

Cezar Migliorin é professor do Departamento de Cinema Vídeo da Universidade Federal Fluminense.

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