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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Não são poucos os poemas e as músicas que falam do sentimento de pertencer a um lar, ou da saudade de casa. A busca por essa sensação de familiaridade, conforto e segurança, existentes somente quando estamos em “casa”, parece ser algo atávico a nós, seres humanos. Se exagerado, pode levar a um tribalismo perigoso, a um nacionalismo xenófobo. Em doses certas, porém, produz um patriotismo saudável.

Roger Scruton, filósofo conservador britânico, defende em seu novo livro, Where we are, esse valor patriótico, tomando como base o caso específico do Reino Unido e o “Brexit”, aprovado em plebiscito. Muitos na imprensa repetiram que a escolha pela saída da União Europeia foi tomada pelos mais pobres e ignorantes, com medo da globalização. Não deixa de ser interessante ver que um dos mais inteligentes e preparados pensadores da atualidade se colocou ao lado desses “alienados”.

A questão central de seu argumento gira justamente em torno da “soberania nacional”. Para muitas pessoas comuns, as redes de contato pessoal, os relacionamentos nas vizinhanças, a decisão de quem nos governa e de onde, são todos aspectos cruciais e urgentes. Para essas pessoas, algo estava em risco, que foi ignorado pelos políticos, e que era muito mais relevante do que argumentos econômicos e geopolíticos. Era uma questão de identidade: quem somos, onde estamos, e o que nos mantém unidos em torno de uma ordem política comum?

Os trabalhadores de vários países, em especial na Inglaterra, provaram que a ideia da nação vinha antes do conceito de classe

Aqueles que focam apenas em argumentos econômicos ignoram que essa questão antecede a economia. Para Scruton, as democracias ocidentais estão sofrendo de uma crise de identidade, e isso tem afetado as decisões da população. O “nós”, que é a fundação de uma sociedade de confiança e uma condição sine qua non para um governo representativo, tem sido atacado não só pela economia global e pelas mudanças aceleradas no estilo de vida, mas também – e, em muitos casos, principalmente – pela imigração em massa de pessoas com outras línguas, costumes e religiões, que tantas vezes entram em confronto com os hábitos locais e representam lealdades concorrentes.

Para piorar, a população local nem sequer pode questionar tais mudanças, pois logo é acusada pelas elites de “xenofobia”, “racismo” ou “islamofobia”. Mas, numa democracia, é o povo que confere poder aos governantes, e é ao povo que esses governantes devem obediência. A questão da soberania se torna evidente: precisamos saber quem “nós” somos, como povo, e o que nos faz um mesmo povo, para que a democracia seja possível. Não pode haver democracia sem “demo”, sem o “nós” ligado por um sentimento compartilhado de pertencimento. Um povo não é somente o ajuntamento de indivíduos atomizados como ilhas, mas algo a mais, que demanda ao menos um apreço por valores comuns básicos.

No caso dos britânicos, lembra Scruton, há toda uma tradição de valores que explica a identidade do povo. A responsabilidade que cobram dos governantes, por exemplo, tem sido uma marca desde séculos. O patriotismo tem sido outro aspecto presente no legado britânico, um sentimento derivado do respeito pelo e o amor ao estilo de vida que eles possuem. Essa “ideia britânica” encontra-se ameaçada pela imigração em massa e o multiculturalismo.

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Burke falava da importância dos “pequenos pelotões” formados pelas alianças locais, pontos focais de lealdades locais, mas duráveis. Daí viriam as emoções espontâneas, e a enorme quantidade de associações voluntárias, de clubes para todos os tipos de interesses, demonstra como os britânicos apreciam essa característica. Os britânicos sempre valorizaram sua liberdade, independência, e as instituições que permitiam tal modo de vida. Foi justamente esse caráter britânico que Churchill soube explorar tão bem com suas palavras, para mobilizar o povo na luta contra o nazismo e pela sobrevivência do legado britânico, da própria civilização ocidental. Eles estavam lutando, prontos para morrer, em defesa de seu “lar”.

As metrópoles urbanas impessoais e as conexões virtuais podem ter enfraquecido nos mais jovens essa sensação de pertencimento local, mas ainda é visível o mito da vida rural como cola social nos ingleses, e basta pensar na Hogwarts imaginada por J.K. Rowling. Desde o Iluminismo, ao menos, a literatura e a arte britânicas têm sido essencialmente pastorais em sua inspiração. Mesmo aqueles que estão distantes desse estilo de vida conseguem imaginá-lo como um ideal, como algo importante que se perdeu e deve ser buscado para dar propósito à vida.

Os marxistas acharam que todos os trabalhadores poderiam abandonar esse amor pela “casa” e focar na abstração da “classe”, todos se unindo no mundo todo em torno dessa ideia comum. Os trabalhadores de vários países, em especial na Inglaterra, provaram que a ideia da nação vinha antes do conceito de classe. Eles eram ingleses antes de ser marxistas. George Orwell foi um dos que perceberam essa força superior da ideia da Pátria. O coração do proletariado estava no “nós” que formava uma só nação, um só povo, de classes distintas numa luta comum.

Precisamos saber quem “nós” somos, como povo, e o que nos faz um mesmo povo, para que a democracia seja possível

“É porque a cidadania pressupõe adesão de membros que a nacionalidade se tornou tão importante no mundo moderno. A nacionalidade não é o único tipo de filiação pré-política, nem é um laço exclusivo. No entanto, é a única forma de adesão que se mostrou capaz de sustentar um processo democrático e um império das leis liberal”, diz Scruton. A nação vem justamente para aplacar os conflitos tribais. Por nação podemos entender o compartilhamento de um território comum, da mesma língua, instituições, costumes e um senso de história, que faz com que aquele povo se considere igualmente comprometido tanto com o local de residência como com o processo político e legal que o governa.

“Membros de tribos se veem como uma família; membros de comunidades de credo se veem como fieis; membros de nações se veem como vizinhos”, resume o filósofo. E quando os fieis colocam sua lealdade fora da vizinhança, os interesses podem entrar em um conflito irremediável. Se a lealdade do muçulmano britânico está em Alá, e não na comunidade local em que vive, ele dificilmente irá se tornar um bom cidadão, que respeita as leis locais, um vizinho que compartilha daquela mesma sensação de que estamos todos no mesmo barco.

Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é presidente do Conselho do Instituto Liberal.
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