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| Foto: Nicholas Kamm/AFP

Se no jogo de xadrez o rei tivesse os mesmos movimentos da dama, o restante do jogo seria igual? Ou melhor, o jogo ainda seria o xadrez? Se, no futebol, todos os jogadores pudessem pegar a bola com as mãos, o jogo ainda seria o mesmo? Ou ele mudaria tanto que passaria a ser chamado rúgbi, futebol americano ou outro nome?

Os exemplos advindos de jogos e dos esportes são interessantes porque permitem, a qualquer um, visualizar o efeito da alteração de uma regra fundamental para o funcionamento de alguma instituição. De todo modo, é preciso notar que as mudanças nas regras têm, inevitavelmente, este efeito de mudança em qualquer situação. A mudança nas regras da língua portuguesa, que entraram em vigor no ano de 2009, exigiram a revisão de inúmeras obras. A Lei Seca é outra regra que, apesar de ainda ser descumprida, alterou os hábitos de muitos brasileiros. Mas esses dois exemplos não refletem os mesmos efeitos das alterações nas regras dos jogos, propostas no primeiro parágrafo.

Conceber uma mudança tão intensa exige certa reflexão e, por que não?, criatividade. Sem a preocupação com cláusulas pétreas ou procedimentos formais, por enquanto, pense-se em mudanças estruturais, como tornar o voto facultativo no Brasil. Neste caso, as campanhas seriam as mesmas? Os resultados das eleições seriam os mesmos? E se, no Brasil, a competência para o controle de constitucionalidade fosse retirada do Poder Judiciário, os diálogos institucionais seriam os mesmos? E se a regra que exige maioria qualificada nas duas casas legislativas para a aprovação de uma emenda à Constituição fosse reduzida para maioria simples?

Essas mudanças seriam capazes de provocar uma verdadeira catástrofe nas instituições. É justamente por isso que, nos Estados Unidos, uma hipótese semelhante é chamada de “opção nuclear”, ou “nuclear option”. O nome vem, de fato, da comparação da alteração de uma regra com o uso de uma bomba nuclear, tamanho o seu efeito na política interna do país.

A situação de hoje é a oposição de amanhã

É esta “nuclear option” que vem ganhando espaço nos jornais internacionais, ligada às regras de procedimento do Senado norte-americano. Atualmente, o Senado segue um conjunto de regras – semelhante a um regimento interno – que confere à oposição uma série de mecanismos para impedir que determinada matéria seja votada. O principal deles é o chamado “filibuster”, termo originário no idioma holandês utilizado para referir-se aos corsários que embargavam as embarcações daquela potência naval. A estratégia é simples, mas bastante eficaz: trata-se de obstruir a votação de um tema pelo emprego de discursos intermináveis. O filibuster apoia-se em uma previsão do regimento interno do Senado que não restringe o limite temporal dos debates. Por meio dele, a oposição, quando bem organizada, pode adiar a votação de um tema por dias, semanas ou meses. Com isso, o filibuster acaba impedindo não só a votação do tema controverso, mas obstrui toda a pauta do Senado. Muitas vezes, a estratégia funciona porque os senadores têm outros interesses e acabam por não desistir ou arquivar o assunto que obstruía os trabalhos. O recurso é tão eficaz que conta com quase 200 anos desde a primeira vez em que foi utilizado, em 1837.

Ao longo de todo este tempo, evidentemente, concebeu-se um mecanismo para permitir o encerramento dos debates. Trata-se da “cloture”, nome derivado do idioma francês e que significa fechamento, encerramento. De acordo com as regras atuais, 16 senadores devem assinar uma petição e dirigi-la ao presidente do Senado, requerendo que os debates tenham duração limitada no tempo. A petição é lida e aguarda o decurso de um dia de sessão legislativa. Após a chamada para sua votação, o encerramento do debate ocorre se a petição obtiver 60 votos em seu favor – três quintos do Senado, que nos Estados Unidos é formado por 100 senadores.

Ao se analisar os números exigidos para encerrar um filibuster e a situação atual do Senado norte-americano, os impasses do governo Trump passam a fazer mais sentido. Das 100 cadeiras, 52 são ocupadas por republicanos, aliados a Trump; 46, por democratas, e duas, por senadores independentes – que formam a minoria, com 48 votos. Em síntese, a maioria republicana é suficiente para obter apenas a maioria simples. É improvável que os republicanos cheguem aos 60 votos necessários para obter cloture.

Diante deste impasse anunciado, o governo Trump resgatou outra saída, já conhecida da política norte-americana, mas em eventos de pequena repercussão no Brasil. A questão também não é difícil de ser explicada. Pelo artigo 5.º da Constituição dos Estados Unidos da América, é possível alterar o regimento interno do Senado por maioria simples. Com isso, seria possível reduzir o número de votos necessários para se obter a cloture para 51, e com isso garantir a aprovação das medidas desejadas pelo atual governo republicano.

Mas por que essa solução não foi adotada até hoje? A resposta, em termos objetivos, é que a situação de hoje é a oposição de amanhã. Diversas composições do Senado tiveram a oportunidade de alterar essa regra, mas essa opção não era utilizada justamente pelo adjetivo que lhe foi atribuído, por causa de seus efeitos: trata-se de uma medida nuclear. Ao pulverizar o papel da minoria no Capitólio, qualquer partido admite não ter papel algum no próximo governo da oposição.

Registre-se que os democratas não são meras vítimas nessa história. Os senadores do Partido Democrata, aliados ao governo Obama, utilizaram a opção nuclear para permitir a votação de nomeações feitas pelo presidente democrata para todos os cargos do Poder Executivo e os cargos de nomeação do presidente ao Poder Judiciário, com exceção da Suprema Corte.

O que está em jogo na indicação feita por Trump não é apenas a confirmação do nome de Neil Gorsuch. O recente falecimento do juiz Antonin Scalia criou a possibilidade de reverter a composição ideológica da Suprema Corte. Caso o governo Obama conseguisse emplacar a indicação de Merrick Garland, a corte poderia ter uma composição majoritariamente liberal pela primeira vez em 40 anos. Como os republicanos detinham a maioria do Senado, Garland nem sequer chegou a ser sabatinado, sendo a indicação arquivada ao fim da legislatura. Garantir a substituição de Scalia por outro juiz conservador permitiria ao governo Trump manter a linha ideológica da corte. Há a expectativa de que Trump venha a fazer outras três indicações à Suprema Corte, com isso tendo a oportunidade de definir o alinhamento do Judiciário por mais de uma década. Por causa disso, é possível que os democratas abram mão do uso dos filibusters no processo de indicação de Gorsuch, que já é juiz federal aprovado por unanimidade pelo Senado no passado, para evitar que a opção nuclear possa aniquilar a defesa da bancada minoritária como uma medida de proteção, mantendo o filibuster vivo para lutarem outro dia.

Guilherme Brenner Lucchesi, mestre em Direito pela Cornell Law School e doutorando em Direito pela UFPR, é professor e coordenador da Academia Brasileira de Direito Constitucional e pesquisador visitante do Instituto Max Planck (Alemanha). William Pugliese, doutor e mestre em Direito pela UFPR, é professor substituto da UFPR, professor e coordenador da Academia Brasileira de Direito Constitucional e professor visitante do Instituto Max Planck.
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