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O Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília.
O Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília.| Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

O nosso Judiciário, mesmo com reconhecido avanço decorrente de elevada informatização, carrega defeitos estruturais que precisam ser enfrentados e resolvidos com urgência para o necessário cumprimento da determinação constitucional de eficiência, conclusão dos julgamentos em prazo aceitável e atendimento aos objetivos fundamentais de pacificação social e segurança jurídica.

O primeiro deles é a existência de quatro instâncias de julgamento. A estrutura de até quatro instâncias – juízo local, tribunal regional, tribunal nacional (STJ, TST, TSE e STM) e Supremo –, permeada com dezenas de recursos processuais e ações judiciais autônomas paralelas (mandados de segurança, habeas corpus, reclamações e ações cautelares), aproxima o nosso Judiciário de um sistema kafkiano, incompreensível para o leigo, lento e incompatível com a modernidade. A demora das quatro instâncias é sentida e desaprovada socialmente nos processos criminais, com a aplicação do famigerado princípio da inocência até o trânsito em julgado na última instância, novamente em vigor no nosso sistema judicial, permitindo que os processos criminais sigam com recursos até o Supremo, para, somente depois do último julgamento, iniciar o cumprimento da pena, causando anos de demora, aumentando a possibilidade de prescrição do crime, esquecimento e impunidade.

O segundo problema é o exagerado poder do Supremo. Virou até motivo de chacota a monstruosa competência processual do Supremo, quando comparada com as demais cortes supremas do mundo. Basta mencionar que recebeu 74.717 processos em 2020, proferiu quase 99 mil decisões, sendo 81.161 decisões monocráticas e 18.208 colegiadas, volume incompatível para uma corte de 11 ministros que precisa decidir centenas de questões nacionais fundamentais, constitucionalidade de leis e conflitos políticos candentes. O amplo poder concedido ao Supremo para decidir todas as questões constitucionais em quarta instância, em todos os tipos de processos, leva à disfuncionalidade do sistema judicial. Com uma Constituição extensa, regulando quase toda a vida nacional, o Supremo acaba recebendo milhares de processos subjetivos, recursos de questões particulares, que deveriam ser resolvidas nas três instâncias inferiores. Uma suprema corte não pode perder seu precioso tempo com questões menores, em detrimento das questões nacionais urgentes.

Em terceiro vem a competência limitada do STJ. A Constituição de 1988 criou o Superior Tribunal de Justiça, com competência sobre todo o território nacional, para diminuir a carga de processos do Supremo e agilizar o sistema judicial. Esse importante tribunal, terceira instância de julgamento da Justiça Comum, não foi suficiente, exatamente porque recebeu competência para julgar somente questões relacionadas às leis comuns, mantendo-se a competência do Supremo para todas as questões relacionadas com a Constituição, em todos os processos. Essa divisão de poderes é insólita.  As questões do processo são cindidas, o STJ decide as questões de lei comum e, depois, o mesmo processo pode ir ao Supremo para decidir questões constitucionais alegadas, que podem até modificar a decisão do STJ. Essa competência restrita do STJ, que não ocorre nas instâncias inferiores, confirma, na prática, o que tem sido chamado de quatro instâncias, uma estrutura verticalizada, farta de recursos processuais, que faz os processos demorarem anos, quando não décadas.

Em quarto, o Supremo dividido. A divisão do STF em duas turmas de cinco ministros foi um atalho para enfrentar o monstruoso número de recursos de processos subjetivos vindos de outros tribunais. A divisão, por si, já é um problema, pois turma não é plenário, único órgão que representa efetivamente o Supremo, conforme define a Constituição. A divisão gerou diferenças de entendimento, injustiças comparativas e até jurisprudência setorial, situação desconfortável para uma corte suprema.

O quinto problema é a desconsideração do plenário do STF. O crescente poder dos ministros para decisões monocráticas tem causado acirramentos com os demais poderes políticos, grave insegurança jurídica e críticas fundadas de toda a sociedade. É necessária a concessão de poder cautelar ao ministro relator para decisões urgentes; entretanto, a decisão deve ser submetida ao colegiado em prazo curto e certo, evitando a manutenção de um poder pessoal afrontoso ao plenário – onde as diversas visões são compensadas e pacificadas – e contrário aos princípios republicanos. Não é razoável, por exemplo, que uma emenda constitucional, aprovada por três quintos dos deputados federais (308 votos) e dos senadores (49 votos), seja suspensa por um ministro do Supremo, aguarde anos para ser submetida ao plenário e, por fim, seja declarada inconstitucional por maioria ínfima (6 a 5) e até ocasional. Os princípios republicanos e a segurança jurídica exigem uma similitude de procedimentos, exigem um aprimoramento da maioria necessária para a declaração de inconstitucionalidade de leis.

Em sexto, o excesso de recursos. O Brasil é o paraíso dos recursos processuais e impugnações. Recursos para novo julgamento na instância superior (apelação ao tribunal, recurso especial ao STJ e recurso extraordinário ao Supremo) e vários recursos dentro de cada uma das quatro instâncias (embargos de declaração, agravo regimental, embargos infringentes) possibilitam dezenas de recursos em cada processo. Não bastasse, corre em paralelo com o amplo sistema de recursos uma bondosa gama de ações autônomas (habeas corpus, mandados de segurança, ações cautelares e reclamações), permitindo questionar reiteradamente todas as decisões do processo. Temos um excesso de recursos processuais e impugnações inviabilizando o princípio de razoável duração do processo, determinado expressamente pela Constituição, gerando insegurança e descrença no sistema judicial.

O sétimo defeito é a assistência judiciária gratuita. A Constituição Federal garante o acesso ao Judiciário; entretanto, a legislação alargou demasiadamente o princípio, sem colocar limites objetivos, concedendo ao que declarar impossibilidade de pagar custas e advogado o acesso ao Judiciário sem taxas e a isenção de pagar despesas do processo, mesmo quando a demanda for julgada improcedente. Acesso livre de despesas e saída também livre de despesas. Isso resultou em uma explosão de demandas, aventuras e tentativas, à medida que não há qualquer risco ou responsabilidade em caso de se perder a demanda. O vencedor do processo, que teve despesas para se defender, fica com prejuízo. Esse critério, por demais amplo, precisa ser remodelado, permitindo a isenção de custas para o acesso, mas com a possibilidade de responsabilização ponderada quando a demanda for improcedente. A legislação já tem um bom sistema de proteção a todos os devedores (impenhorabilidade de salários, poupança popular, habitação, bem de família e instrumentos de trabalho), não havendo necessidade de isenção tão ampla e descompromissada com o princípio da responsabilidade.

Por fim, o oitavo defeito é o injusto processo legal. Todos os países democráticos cultuam o “devido processo legal justo”. O Brasil institucionalizou o “injusto processo legal”. O Estatuto da OAB, em 1994, tomou a verba ressarcitória de despesa com advogado, pertencente ao vencedor do processo, e a transferiu para o advogado do vencedor. O Judiciário reconhece um direito de 100 e o jurisdicionado recebe somente 80, deixando de ser ressarcido dos 20 que gastou com seu advogado, por exemplo. Por outro lado, o advogado do vencedor recebe dois honorários, os contratuais e os honorários de sucumbência, que naturalmente pertenceriam à parte vencedora do processo, podendo chegar a total de 40% da causa ganha. Caso queira ressarcimento da despesa com seu advogado, a parte vencedora tem de propor um novo processo. Processo gerando processo, em absurda circularidade infinita.

Temos graves problemas para resolver: 70 milhões de processos em andamento no Judiciário, estoque de quase 40 mil no Supremo (números campeões no mundo), demora, insegurança e descrença. Esse quadro é resultante da conjugação simultânea das distorções acima resumidas. O Judiciário está em situação insustentável, que precisa ser enfrentada com urgência. O Supremo e a academia jurídica têm obrigação de liderar mudanças e aprimoramentos.

A reforma dos códigos processuais (Civil e Penal) e informatização geral, por mais excelentes que sejam, não são suficientes e adequadas para resolver problemas estruturais. Movimentos de redução da competência do Supremo, redução do número de instâncias, redução dos recursos processuais, conclusão dos processos subjetivos na terceira instância e regulamentação dos poderes dos ministros devem ser incentivados, fortalecidos e levados à conclusão no parlamento.

A monumental máquina do Poder Judiciário brasileiro, uma das mais dispendiosas do planeta, exige a manutenção de outras grandes estruturas paralelas para acompanhamento dos processos em quatro instâncias – procuradorias e defensorias públicas, advocacia, ministérios públicos e assessorias – que agregam elevadas despesas ao sistema judicial, tudo agravando fortemente o chamado “custo Brasil” e a produtividade nacional. Esse exagerado aparato estatal, uma bondosa zona de conforto para os seus incluídos, é um peso injusto para a sociedade, pela burocracia, lentidão e ineficiência sistêmica.

A legitimidade social e respeitabilidade dos órgãos estatais dependem dramaticamente de procedimentos decisórios razoáveis, rápidos e justos. Somente uma reforma estrutural no Judiciário poderá resolver o seu histórico de ineficiência sistêmica, lentidão, insegurança e injustiça, permitindo conclusão mais rápida dos processos, jurisprudência constitucional estabilizadora em tempo muito mais curto, segurança jurídica e pacificação social. Se o modelo não funciona bem, deve ser aprimorado. O Brasil não avançará qualitativamente sem essa reforma. A sociedade precisa cobrar essas mudanças.

José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá.  

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