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| Foto: Mario Tama/AFP

De todas as maneiras que imaginei o inevitável – ser detido, ficar preso –, nunca me vi sentado no chão de cimento frio de uma cela, no sul do Texas, cercado de crianças.

Foi em julho de 2014. O espaço, pelo que me lembro, não tinha mais que 6 m x 9 m. À minha volta havia pelo menos uns 25 garotos, alguns com cinco anos; o mais velho não tinha mais que doze. O ar cheirava mal. Um menino do outro lado da sala chorava, inconsolável, a cabecinha enterrada no peito. A maioria tinha uma expressão confusa. Era óbvio que não tinham a menor ideia de onde estavam ou por que estavam ali.

A única fonte de entretenimento vinha dos cobertores térmicos, folhas metálicas fininhas que deveriam nos manter aquecidos. Três garotos brincavam com eles como se fosse brinquedo, amassando até fazer uma bola, jogando para lá e para cá.

Uma janela dava para um pátio interno, onde se encontrava cerca de uma dúzia de agentes; tirando isso, não havia muito o que ver. Eu só conseguia ficar olhando para os sapatos dos pequenos. Os meus estavam brilhando, novinhos; os deles, sujos, gastos e enlameados. A única coisa em comum era que todos estavam sem cadarço.

“Jose Antonio Vargas, não preciso de você por enquanto. Vamos transferi-lo”, anunciou o agente.

Assim que o homem disse meu nome, um dos garotos que brincava com o cobertor começou a falar comigo. Não entendia nada do que falava. Só pesquei uma palavra: “miedo”. Alguma coisa que tinha a ver com “miedo”.

Este é um país receptivo, onde gente como eu faz amigos, ganha apoio e até encorajamento de cidadãos norte-americanos de todas as raças

Se eu falasse espanhol, poderia ter contado aos meninos a história que mantive em segredo durante vários anos, a mesma que agora me pedem para repetir quase todo dia: eu nasci nas Filipinas, país cuja história colonial-imperial é caracterizada como “300 anos de convento, 50 anos de Hollywood”. Quando tinha doze anos, minha mãe me colocou em um avião rumo à Califórnia, para morar com meus avós, pais dela. Aos 16, quando fui dar entrada na carteira de habilitação, descobri que os documentos que meu avô me dera eram falsos, que eu não estava neste país legalmente.

E foi por isso que, 2014, um agente de Patrulha de Fronteira no aeroporto de McAllen, no Texas, me deteve no momento em que lhe expliquei a situação.

Se eu falasse espanhol, poderia ter falado aos meninos do país em que chegaram e tinham sido detidos, um país em que eu vivia há mais de vinte anos, um país para o qual não pedi para vir, mas onde fui educado e onde trabalho desde a adolescência, para onde meus avós e outros parentes imigraram com documentação, mas onde me vi sem ter uma maneira de me legalizar.

Este país, que se orgulha de ter sido fundado e criado por imigrantes, é o mesmo que tem leis e políticas anti-imigração. Perguntem para os chineses. Falem com os irlandeses.

Este é um país que depende da mão de obra imigrante, quase sempre barata, principalmente dos que estão em situação irregular, ao mesmo tempo em que gasta bilhões de dólares por ano detendo, prendendo e deportando gente que o governo considera “ilegal”. Empregados sem visto como eu pagam impostos para esse mesmo sistema. Este é um país receptivo, onde gente como eu faz amigos, ganha apoio e até encorajamento de cidadãos norte-americanos de todas as raças e situações políticas/econômicas que, ao mesmo tempo, continuam a votar, em nível local e nacional, em políticos que mantêm e representam uma máquina governamental cruel que não vê problema em encarcerar crianças.

Se eu falasse espanhol, teria dito aos meninos que eles não têm culpa de nada. Poderia ter explicado da maneira mais clara e acessível possível a relação entre as ações irreversíveis dos EUA e as reações inevitáveis de seus países de origem. Como um acordo comercial, do tipo do Nafta, deixou milhões de mexicanos desempregados e levou muitos pais de família a atravessar a fronteira para poderem alimentar os filhos. Como décadas de políticas intervencionistas implantadas por republicanos e democratas geraram instabilidade econômica e política e semearam a violência em El Salvador, Guatemala e Honduras.

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Como gente como a gente vinha para os EUA porque os EUA – seu povo, suas políticas, seus produtos – estavam e continuam presentes em nossos países.

Não entendo muita coisa em espanhol. A minha única relação com o idioma é o meu nome – que é Jose por causa da nossa colonização espanhola, mas não é José por causa do imperialismo norte-americano. (Depois que os norte-americanos expulsaram os espanhóis das Filipinas, as máquinas de escrever perderam o acento nas vogais.)

Por isso, naquela cela, naquela noite, disse ao garoto que segurava o cobertor embolotado: “No hablo español.” E rapidamente acrescentei: “Soy filipino.”

A declaração pareceu deixá-lo ainda mais confuso. Não sei se ouviu quando eu disse em um sussurro, quase como se fosse uma oração: “Pepeton ang pangalan ko.” Meu nome é Pepeton.

Na verdade, é o meu apelido, mistura dos diminutivos de Jose (Pepe) e Antonio (Ton). É o nome do meu passado, aquele que minha mãe e todos nas Filipinas que me conhecem usam.

É o nome que evitei usar para poder construir uma nova identidade, não a “ilegal” que você vê e do qual ouve falar no noticiário, mas do jornalista que dá a notícia e se torna redator, para que pudesse ver meu nome em um pedaço de papel. Só que dentro daquela cela não havia onde se esconder, nada do que fugir, nenhum personagem a desempenhar.

Depois de ter sido algemado no aeroporto, fui levado em uma van branca vazia. Na chegada, dois agentes tiraram tudo de mim: meu celular, minha carteira, minha mochila, minha bagagem. Pediram que eu tirasse o cinto de couro e os cadarços dos sapatos. Quando perguntei o motivo, um deles foi evasivo: “Não queremos que se machuque.”

Fiquei com vontade de rir. Sempre usei a risada para esconder minhas emoções; no caso aqui, para me distanciar do absurdo da situação. É realmente uma questão de ter os papéis adequados e do que dizem as leis? De quem é cidadão e quem não é? Estamos falando da mesma cidadania a que muitos norte-americanos, insensíveis, não dão valor?

Perguntei a um dos guardas se falava espanhol; ele disse que sim. “O que significa ‘miedo’?”, prossegui. “Medo”, ele respondeu.

Queria lhes dizer que o povo norte-americano é capaz de ser melhor que suas leis. Queria lhes dizer: “No miedo”

Sentado no chão, fiquei pensando nos pais dos meninos, no terror que devem ter sentido ao perceberem que tinham que fazer o que era preciso. Também pensei na minha mãe, questionando novamente, como tinha feito durante todos esses anos, o que ela teria dito a si mesma ao se despedir de mim naquele aeroporto, 25 anos atrás.

Nós não nos vemos pessoalmente desde 1993, mas às vezes nos falamos por telefone ou pela internet. Porém, raríssimas são as vezes que comentamos o dia em que nos separamos. De vez pergunto um fato aqui ou ali. Que roupa eu estava usando? E ela? Quais foram suas últimas palavras para mim? Mas nunca mencionamos o que sentimos então, o que perdemos, a significância da partida, da separação.

O fato é que, se minha mãe tivesse sabido na época o que sabe hoje – que ligar para ela é difícil porque não consigo fingir que conheço a voz do outro lado da linha, que vê-la no Skype ou no FaceTime dá a impressão de uma piada de mau gosto, que a tecnologia que nos conecta com tanta facilidade é a mesma que torna nossa separação ainda mais inexorável –, talvez não teria se despedido de mim no aeroporto. Em uma de nossas raras conversas telefônicas, ela soltou: “Olho para você hoje, a pessoa em que se tornou, e como poderia ter qualquer arrependimento.” Tenho certeza que o disse como afirmação, mas a entonação era de indagação.

Não tenho bem certeza do que me tornei.

Só sei que em todas as situações complicadas e com potencial de complicação da minha vida nos EUA – entrar na faculdade, conseguir um emprego, tirar a carteira de habilitação para ter uma identificação válida para poder ter um emprego e mantê-lo –, fui ajudado por um estranho que deixou de ser estranho.

Depois de me dizer que meu green card era falso, a mulher de cabelo crespo e óculos do Departamento de Veículos Motores poderia ter chamado o pessoal da imigração.

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Depois de descobrir que eu não podia receber bolsa porque não tinha documentação legal, a diretoria da Mountain View High School não precisava ter me ajudado. Aliás, eu nem pedi ajuda porque nem sabia como – mas eles se ofereceram, mesmo quando eu nem sabia de que tipo de assistência precisava, mesmo quando nem sabiam o que estavam fazendo.

Depois que confessei ter documentos falsos, cartão do Seguro Social adulterado e uma carteira de habilitação que nem poderia ter, o pessoal mais antigo da sala de redação do Washington Post, onde eu trabalhava como repórter, poderia ter me levado para o RH e pedido minha demissão.

Sentado no chão, sozinho naquela cela, não pude deixar de pensar no futuro daqueles meninos. Fiquei imaginando se, quando e como seriam soltos. Se ficassem, quem os receberia neste país? Como seriam recebidos? Queria lhes dizer que não precisavam ficar assustados, que sobreviveriam a qualquer coisa que tivessem que superar. Queria lhes dizer que o povo norte-americano é capaz de ser melhor que suas leis. Queria lhes dizer: “No miedo.”

Jose Antonio Vargas é o autor do inédito “Dear America: Notes of an Undocumented Citizen”, do qual este artigo foi adaptado.
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