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Marcelo D2 e Mano Brown representam, como símbolos, aquilo que se tornou o ambiente cultural brasileiro: algo dicotômico, maniqueísta, simplista, destroçado e reducionista. Ao ouvir o rapper paulista levantar-se contra a tutela que a esquerda teima em fazer com os pobres e pretos brasileiros, negando realizar a autocrítica necessária dos 16 anos em que esteve no poder, vi ali um pouco do espírito do negro, que não se rebaixa a senhores vis e agressivos, mesmo quando aparentam-se gentis e corteses. Pelo contrário, lendo o ataque que o rapper carioca realizou ao deputado eleito Hélio Negão nas redes sociais, igualmente tornou-se claro o espírito escravocrata, que não reconhece a liberdade e a independência dos negros e de seus valores e opções até hoje.

Pois o racismo é algo realmente existente e duro entre nós, brasileiros. Contudo, ele é muito mais cruel do que parece. Há, de certo, um racismo atualizado, que certa vez chamei de 2.0, pois é diferente do que aparece nos telejornais. O racismo que limita acesso à piscina, limita espaço na rua, impede presença em certos lugares, é obviamente mau e injusto, mas ainda é um racismo ligado ao exterior da população negra e pobre. Trata-se apenas de não ocupar espaços que alguns entendem exclusivo. Entretanto, há o racismo que até aceita conviver fisicamente com negros, até se deixa tocar por suas peles pretas, mas não admite conviver espiritualmente com os negros. Esse é o racismo ou a escravidão 2.0.

Imaginar uma negra que tenha opinião diversa do povo esclarecido é um verdadeiro descalabro para aqueles que querem manter essa parcela da população na senzala intelectual

Para o escravocrata do século 21, tudo bem fazer parte do mesmo programa de televisão, tudo bem partilhar a mesma sala de professores, tudo bem pegar o mesmo elevador, contanto que o figurante não tenha a pretensão de questionar os limites espirituais e ideológicos do negro brasileiro, contando que o professor diga sim à claque lacradora e antenada das redes, contanto que o vizinho do apartamento do lado se coloque no seu lugar de tutelado pelo mainstream dos formadores de opinião. Como disse Karl Marx: “as classes e as raças, fracas demais para conduzir as novas condições da vida, devem deixar de existir” ou devem deixar-se guiar pelos mais fortes e hábeis, a fim de que sua existência tenha algum sentido.

Esse é o espírito da escravidão contemporânea. Não é a senzala clássica, violenta, mas ainda é um tipo de enclausuramento. Trata-se de senzala intelectual. Até se aceita que, com muito ou pouco esforço, alguém escape do fosso injusto que o Brasil impõe a milhões de negros. Mas essa liberdade diz respeito ao acesso a bens de consumo. Negro é bom cantando, jogando ou comprando: artes, esportes e mercado. Ele que não apareça com um artigo acadêmico, viu? Imaginar um negro que tenha valores diferentes do politicamente correto é um absurdo sem tamanho.

Paulo Cruz: Coisa de preto (publicado em 12 de novembro de 2017)

Leia também: Discriminação e desigualdade” (artigo de Rodrigo Constantino, publicado em 4 de junho de 2018)

Imaginar uma negra que tenha opinião diversa do povo esclarecido é um verdadeiro descalabro para aqueles que querem manter essa parcela da população na senzala intelectual. Eles não admitem que haja vida interior na negritude, não. Negro só possui músculos, cordas vocais, cartão de crédito. Tudo o que vem daí é “engraçadinho”, “bonitinho”, “arrumadinho”, mas eles que não venham com ideias. Os que escaparam dessa senzala intelectual são realmente excepcionais! Entretanto, sempre terá alguém a lhes dizer que eles não saíram, na verdade, sempre haverá alguém a dizer-lhes que algum senhor benigno lhes fez um favor, sempre haverá alguém a dizer que fazem parte da parcela dos negros da Casa Grande.

Robson de Oliveira é professor de filosofia da PUC-RJ e diretor do Centro Dom Vital e do CTSmart.
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