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Ilustração: Thapcom
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A Constituição paquistanesa reconhece a liberdade religiosa, mas, para entender o que acontece no Paquistão, precisamos retomar a história. O país foi criado em 1947 como um Estado independente, separado da Índia, numa época em que a Grã-Bretanha garantia a independência da Índia. Surgiu para ser uma terra para os muçulmanos, para que pudessem ser livres e praticar o Islã sem serem ameaçados ou dominados pela maioria hindu.

O fundador do Paquistão, Muhammad Ali Jinnah, era um muçulmano moderado e esclarecido, que queria que o novo país do Paquistão, a terra dos muçulmanos, se tornasse um Estado moderno e democrático. Ele não queria um Estado puramente islâmico ou teocrático. Mas infelizmente, ao longo dos anos, grupos islâmicos começaram a se fortalecer e pressionar os governos para introduzir leis islâmicas e a transformar o Paquistão num país muçulmano.

Em 1986, foi introduzida a Lei da Blasfêmia, que se transformou em um problema para cristãos e outras minorias religiosas. De acordo com essa lei, qualquer um que fale contra o profeta Maomé ou manche seu nome – por escrito ou de qualquer outra forma – será sentenciado à morte. A lei também diz que, se alguém corromper o Alcorão, deve ser condenado à prisão perpétua. Mesmo que o Corão caia acidentalmente das mãos, isso pode ser considerado uma profanação.

Embora a Lei da Blasfêmia tenha a intenção de proteger a honra de Maomé e do livro sagrado, ela pode ser facilmente usada de maneira imprópria. É muito fácil para um muçulmano acusar alguém de blasfêmia. Em muitos casos, trata-se de uma acusação infundada, mas o acusador usa a lei como meio de vingança por motivos pessoais. E, quando o acusado é cristão, a ira dos fanáticos é derramada contra toda a comunidade. Isso ocorreu no massacre de Gojra, em 2009, quando crianças fizeram confetes de páginas de jornais que tinham frases do Alcorão transcritas. Isso bastou para uma multidão incendiar um bairro cristão inteiro, deixando oito mortos.

Diversos imãs afirmam que o tempo das cruzadas ainda não chegou ao fim

Em Lahore, em 2013, várias pessoas foram espancadas até a morte sem que pudessem provar sua inocência. Mesmo que um tribunal declare uma pessoa inocente, o acusador tentará matá-la, como ocorreu com um juiz muçulmano, morto em seu escritório após ter declarado um cristão inocente ao término de um processo.

Da mesma forma, em 2011, o ministro federal das Minorias Religiosas, Shahbaz Clement Bhatti, foi morto por fanáticos porque apelou ao Parlamento para emendar a Lei da Blasfêmia. Ele não cometeu blasfêmia; só queria impedir que a regra fosse usada de maneira imprópria, como acontece com frequência. Mas, para os fanáticos, até criticar a lei significa cometer blasfêmia.

Recentemente tivemos o caso de Asia Bibi, uma pobre cristã condenada à morte por blasfêmia, que finalmente foi absolvida e exilada no Canadá. O problema da Lei da Blasfêmia é inerente à nossa sociedade, que ainda não está preparada para administrar adequadamente o fator religioso.

Outro problema que o governo é incapaz de impedir é o sequestro, seguido de conversão forçada ao Islã, de meninas cristãs e hindus, obrigadas a se casar com seus captores. Não há números oficiais a este respeito, mas acredita-se que todos os anos muitas meninas são arrancadas de suas famílias e forçadas a se converter.

Rodrigo Constantino: Não dá para tolerar o Islã radical (publicado em 22 de dezembro de 2016)

Leia também: O homem que pode ajudar a acabar com a guerra no Afeganistão (artigo de Ahmed Rashid, publicado em 30 de janeiro de 2019)

A guerra no Afeganistão foi outro fator importante que contribuiu para criar uma sociedade cada vez mais intolerante e preconceituosa. Como as forças da Otan vêm principalmente do Ocidente, elas são vistas como cristãos atacando um país muçulmano, assim como fizeram em outro país muçulmano, o Iraque. Como resultado, os cristãos no Paquistão foram considerados agentes do Ocidente cristão e, portanto, inimigos do Islã. Isso deu origem a uma nova forma de Islã que prega e promove a Jihad (“guerra santa”) contra os não muçulmanos. É um tipo de islamismo que não tínhamos antes no Paquistão. Essa forma extremista não acredita na democracia, vista como um conceito ocidental. Diversos imãs afirmam que o tempo das cruzadas ainda não chegou ao fim, e que o Ocidente encontrou apenas uma maneira diferente de atacar nações islâmicas, como o Iraque e o Afeganistão.

Tudo isso dá uma imagem negativa e sombria do Paquistão, à luz do aumento da intolerância e da violência. Mas nem tudo é escuro e nós não vivemos sem esperança. Somos minoria, mas não somos uma Igreja oculta ou silenciosa. Muçulmanos de boa vontade, como os da Comissão de Direitos Humanos do Paquistão, entre outras organizações, apresentam-se para nos apoiar em nossas dificuldades.

A própria absolvição de Asia Bibi e a maneira como o governo conseguiu lidar com os numerosos protestos que se seguiram após a decisão da Suprema Corte são fatores positivos. Eu mesmo posso testemunhar a grande afeição que me foi demonstrada com a decisão do papa Francisco de me designar cardeal. Minha nomeação foi recebida com alegria por toda a comunidade paquistanesa e muitos muçulmanos se orgulharam dela.

Nossa Igreja administra muitas escolas, hospitais e iniciativas de caridade. Somos poucos, mas muito ativos, e estamos contribuindo para o desenvolvimento do Paquistão.

Joseph Coutts é cardeal-arcebispo de Karachi (Paquistão).

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