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Se a resposta a esta pergunta foi “para defender bandidos”, talvez o leitor sofra de um sério problema de senso comum teórico, ou talvez jamais tenha efetivamente refletido sobre a questão. Vão aqui alguns pontos de reflexão.

Foi com base em um tratado de direitos humanos que o STF afastou a possibilidade de prisão do depositário infiel – aquele individuo que, não conseguindo pagar suas dividas, era convertido em depositário do bem que comprou financiado e, caso não o apresentasse ao juiz para que este tomasse o seu bem, era considerado “infiel depositário” e, por isso, conduzido à prisão.

Foi com base também em um tratado de direitos humanos que se introduziu no Brasil o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Em que pese poder haver deficientes que praticam crimes, não parece ser esta a realidade do país, ou os deficientes são todos bandidos?

Foi com base em um tratado de direitos humanos que o STF afastou a possibilidade de prisão do depositário infiel

A Lei Maria da Penha, conhecida por praticamente todos os brasileiros, foi elaborada no país após uma condenação internacional sofrida pelo Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Parece que a senhora Maria da Penha, que se tornou paraplégica por ato do marido, não se adequa bem ao conceito de bandida.

Alguém conscientemente se opõe a esta sentença: “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”? Ou a esta: “Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade”? Creio que poucos são contra tais assertivas, ambas previstas na Declaração Universal de Direitos Humanos.

Estes exemplos parecem evidenciar que direitos humanos não são para proteger bandidos, mas para proteger seres humanos. Os dias atuais vêm demonstrando um discurso de verdadeiro desdém aos direitos humanos; expressões como “direitos humanos apenas para humanos direitos” são ouvidas sem enrubescer o autor. Boa parte da população liga tais direitos à proteção de pessoas que cometem crime, quase sempre reclamando que não há a mesma proteção à vítima. O discurso é vazio, sem sentido e irreflexivo. Se um particular fere seus direitos, você pode recorrer ao Estado. Mas, quando quem fere seus direitos – especialmente os direitos fundamentais – é o Estado, a quem nós podemos recorrer? O exemplo simples dá a dimensão da importância de um direito que exista independentemente da estrutura política ou jurídica de cada Estado.

Leia também: A quem se destinam os “direitos humanos”? (artigo de Pedro Filipe C. C. de Andrade, publicado em 22 de março de 2018)

Leia também: A proteção das crianças migrantes e o compromisso com o futuro compartilhado (artigo de Juan Miguel González Bibolini, publicado em 31 de julho de 2018)

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada em 10 de dezembro de 1948, em Paris. Dos 56 países que participavam da sessão, 48 votaram a favor da Declaração e oito se abstiveram; ninguém votou contra o texto na assembleia da ONU. A declaração pactua aquilo que, logo após as barbaridades da Segunda Guerra Mundial, se acreditou ser a base mínima de direitos a que qualquer ser humano, em qualquer parte do mundo, tem direito. São convicções éticas transformadas em direitos.

Em 1948, imaginou-se que, independentemente do rumo que o mundo tomasse, politicamente falando, jamais nos afastaríamos de tais direitos, por serem supostamente globais (já que nenhum país se opôs à sua formulação) e eticamente lógicos. Passados 70 anos, quase todas as constituições do mundo reconhecem tais direitos, inclusive e principalmente a brasileira, recheada de direitos fundamentais, comprovando que as escolhas feitas naquela época estavam certas. Mesmo assim, é necessário que a cada crise sejamos lembrados de que pessoas inocentes morreram para que esta geração pudesse comemorar 70 anos de uma declaração de direitos que pertence a todos os seres humanos, mas que ainda não está ao alcance de muitas pessoas ao redor do mundo e na nossa própria vizinhança. Longa vida à Declaração Universal dos Direitos Humanos e à proteção desses direitos humanos!

Flávio Pierobon é advogado e professor de Direito Constitucional.
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