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 | Josh Edelson/AFP
| Foto: Josh Edelson/AFP

Paradise, uma cidadezinha antiga, da época da Febre do Ouro, encravada no sopé da Sierra Nevada, fica a 160 quilômetros de Sacramento e a menos de 24 de Chico, onde moro. Comunidades irmãs, estamos ligadas pela Skyway, uma rodovia sinuosa de quatro pistas. É o trajeto percorrido por milhares de pessoas todos os dias e única opção de saída para nós, que somos a área urbana mais próxima.

Pois há alguns dias esse cenário californiano perfeitamente comum – terras áridas e colinas esparsas, com uma única estrada saindo da montanha – foi palco de uma situação medonha, sem precedentes.

Um incêndio florestal – que, em uma coincidência cruel, foi inocentemente chamado de Fogueira de Acampamento – começou a envolver Paradise enquanto eu dava as minhas aulas, em 8 de novembro. Àquela altura, ninguém tinha a mínima ideia das proporções do fogo, mas, a caminho do carro, passei por estudantes levantando seus celulares para registrar o contraste entre o céu azul e as nuvens escuras, apocalípticas, cada vez mais próximas.

Assim que cheguei em casa, eu e minha família espiamos as redes sociais, horrorizados, testemunhando vídeos ao vivo de moradores fugindo pela Skyway, as chamas cercando-os de ambos os lados, ainda mais aceleradas pela secura da vegetação, verdadeira representação de um pesadelo.

Com o cair da noite, e o fogo a apenas alguns quilômetros de distância, vimos as dúvidas coletivas – como se preparar, o que levar, para onde o fogo pode ir, se é seguro ficar ou não – surgirem e se manifestarem nas ruas. E o resultado foram prateleiras vazias nos mercados, postos de gasolina lotados e carros cheios de uma mistura de tralha de camping, álbuns de fotos, comida em lata e animais de estimação.

Apenas 30% do incêndio foi contido, o número de mortos não para de subir e o mapa continua mostrando o rastro vermelho vivo seguindo para o leste

Nossos vizinhos foram embora. Nós ficamos, mas prontos a sair correndo a qualquer hora, com sacolas e todas as lembranças de família que cabiam na minha perua. Meu marido insistiu em prender as bicicletas no teto, caso tivéssemos de abandonar o carro e sair a pé, como muita gente que fora embora horas antes.

Tremendo com o frio de novembro, minha filha e eu encharcamos o perímetro de nossa casa de água enquanto meu marido tentava tirar o acúmulo de cinzas e as pilhas de folhas queimadas de cima do telhado.

Acordamos na mais completa escuridão, a fumaça escondendo o sol e fazendo a temperatura, que já era de um grau negativo, cair ainda mais. As plantas que continuavam verdes, apesar da chegada iminente do inverno, congelaram e enegreceram. O Índice de Qualidade do Ar estava acima de 500, quando os níveis saudáveis devem ficar abaixo de 50. Praticamente todas as lojas tinham esgotado os estoques de máscaras N95, usadas para proteção ao ar livre. Sem ela, a garganta arde, os olhos lacrimejam e doem. Uma segunda leva de gente foi embora por causa dos riscos à saúde, pelo simples medo de ficar e respirar ali.

Com o fogo se afastando de Chico e seguindo para as florestas no sopé das montanhas, nós nos oferecemos como voluntários nas igrejas e centros comunitários, transformados em núcleos de evacuação para os moradores de Paradise.

O ginásio da igreja em que nos encontramos foi dividido: de um lado, oferecendo bebidas quentes e sanduíches; o resto, lotado de pessoas em colchões de ar e colchonetes, muitas precisando de assistência médica. Os pets, em jaulas, de vez em quando latiam ou miavam.

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Vários banheiros tiveram de ser interditados por causa do impacto do fogo no sistema de saneamento da região, bem antigo. A televisão, apesar do volume quase inaudível, fica ligada o tempo todo, as cadeiras de plástico dispostas próximas ao aparelho, para o qual as pessoas olhavam com expressão vazia. Nós mal tiramos os olhos da tela, como se a ausência de nossa vigilância é que permitisse o número de mortes subir ainda mais.

O choque e os pulmões cheios de fumaça abafam as vozes de quem se anima a contar suas histórias de fuga e a mencionar tudo o que perdeu. Surgem também os relatos heroicos e quase fatais – como a enfermeira que escapou por pouco com o paciente, abrigando-se em uma garagem abandonada, combatendo o fogo com uma mangueira encostada, a professora que encheu o carro de alunos, e por aí vai.

E aí começam a pipocar os sinais preocupantes das classes trabalhadora e operária, agravados pelo desastre: gente no seguro-desemprego, gente deficiente, gente sem seguro-saúde ou residencial, gente sem ter para onde ir.

Neste rincão cada vez mais caro da Califórnia, Paradise era um dos últimos lugares onde ainda era possível viver com um salário fixo. Hospitais, centros de reabilitação, clínicas de convalescença e farmácias comunitárias pontilham suas principais avenidas. Menos de dois meses atrás, o condado declarou não ter condições de abrigar a todos. Quanta gente mais ainda vai ter de ser desalojada?

Um coordenador voluntário nos confessou que a operação estava mais para “campo de refugiados” do que para centro de evacuação. “Vai ser uma maratona, e não uma corrida de arrancada.”

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Páginas e mais páginas começam a pipocar no GoFundMe e em todas as redes sociais – famílias, amigos, colegas, alunos, pais de amigos –, pedindo dinheiro, abrigo, qualquer coisa para ajudar a amenizar a perda total que muitos sofreram. Todo mundo que eu conheço conhece alguém que não tem mais nada. Nós lutamos para encontrar as palavras que expliquem ao resto do mundo o que aconteceu conosco. E ainda está acontecendo.

Apenas 30% do incêndio foi contido, o número de mortos não para de subir e o mapa continua mostrando o rastro vermelho vivo seguindo para o leste. O sol, uma bola vermelha no céu, só aparece por trás da névoa e, no entanto, a generosidade e a gratidão transbordam por todos os cantos.

Uma faixa com os dizeres “Muito obrigado aos bombeiros e resgatistas” está pendurada na passarela principal; montanhas de doações se acumulam nos centros, lojas e abrigos animais. Os restaurantes estão doando refeições.

O fato é que se eventos como a Fogueira de Acampamento são parte do que o governador Jerry Brown chama de “o novo anormal”. O verdadeiro teste para a nossa compaixão e coragem virá nos próximos meses e anos, quando o destino dos mais vulneráveis – aqueles que sempre soubemos que seriam os mais afetados pelas mudanças climáticas – estará basicamente nas nossas mãos, tanto em termos estaduais como nacionais.

Sarah Pape é professora de Inglês da Universidade Estadual da Califórnia em Chico, editora-executiva do “Watershed Review” e reside há muito tempo no Condado de Butte.
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