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Dom Pedro Casaldáliga: expoente da Teologia da Libertação e da promoção dos Direitos Humanos
Dom Pedro Casaldáliga: expoente da Teologia da Libertação e da promoção dos Direitos Humanos| Foto: Reprodução

No último sábado a Igreja Católica no Brasil perdeu um de seus maiores nomes entre os que atuam na defesa e promoção dos direitos humanos: o bispo Pedro Casaldáliga.

Pero Casaldàliga i Pla nasceu em Balsareny, na província de Barcelona, região da Catalunha e era radicado no Brasil desde 1968. Ficou conhecido por sua atuação como padre, teólogo da libertação e defensor dos direitos dos habitantes de São Félix do Araguaia (MT), região que abriga uma das maiores reservas indígenas do país.

Filho de camponeses católicos herdou algo de seu pai, um homem reservado e contemplativo que exercia o ofício de leiteiro. Mas talvez a altivez e determinação de Pedro tenham vindo de sua mãe, filha de família de negociantes de gado e mulher muito expressiva conforme nos relata Francesc Escribano no livro intitulado Descalço sobre a terra vermelha.

Em 1943, aos vinte e quatro anos, Pedro Casaldáliga ingressou na Congregação Claretiana (Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria) e foi ordenado padre em 1952. Sua vinda para o Brasil aconteceu em 1968, com o objetivo de expandir a missão de sua congregação. O então padre Pedro chegou inicialmente ao Rio de Janeiro, indo em seguida para Petrópolis. Na cidade imperial fez um curso preparatório de língua portuguesa e da cultura brasileira durante quatro meses. O curso foi fundamental, em sua visão, para prepará-lo para a dura realidade social e política que enfrentaria na nova missão.

Ao chegar em São Félix do Araguaia, padre Casaldáliga se empenhou para extirpar a malária, doença que dizimava boa parte da população, sobretudo os recém nascidos. Ele mesmo a contraiu por oito vezes e sua saúde sofreu algumas sequelas a partir de então.

Defesa dos Direitos Humanos

O religioso foi incansável no enfrentamento dos abusos cometidos pelo regime militar na região e seu engajamento o fez presenciar o assassinato de várias lideranças campesinas.

São inúmeros os episódios que retratam sua atuação em defesa dos direitos humanos. Em um deles, o então padre Casaldáliga e seu colega Padre João Bosco Burnier dirigiram-se até a delegacia da cidade para libertar mulheres que estavam sendo torturadas por policiais. A tragédia seguiu seu rápido curso e o Padre Burnier foi baleado por um dos policiais, vindo a falecer em seguida.

Em Ribeirão Cascalheira, cidade onde ocorreu o assassinato de Burnier, foi erguido o Santuário dos Mártires em homenagem ao jesuíta. No espaço há fotos que registram a memória de vários homens e mulheres assassinados na região em função do trabalho sociopastoral e político que realizavam.

Em 2010, a Comissão Especial da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República considerou o assassinato do religioso como um crime do regime militar brasileiro.

A ação de Pedro Casaldáliga na formação de consciência sociopolítica, mediada por valores cristãos, exigia a defesa da vida até as últimas consequências. Seu vínculo e adesão às ideias defendidas pela Teologia da Libertação, corrente do catolicismo que defende a “opção preferencial pelos pobres”, foi o principal fator que o levou a denunciar o trabalho escravo, a violência dos latifundiários no Araguaia contra os posseiros e, ainda, o extermínio das populações indígenas. Por suas denúncias contra a concentração fundiária, foi ameaçado por diversas vezes. Pedro Casaldáliga defendia não apenas o direito à vida, mas também à terra.

Em razão de sua dedicação aos mais vulneráveis e de seu esforço pela promoção da liberdade, Casaldáliga foi ameaçado de expulsão do país por quatro vezes durante o regime militar. Sua instituição também o interpelava, paradoxalmente, pelas mesmas razões. Desse modo, o religioso foi convocado ao Vaticano para dar explicações sobre sua teologia, sendo interrogado pelo então cardeal Joseph Ratzinger, prefeito para a Congregação da Fé, feito papa Bento XVI em 2005.

A contribuição de Pedro Casaldáliga ao catolicismo contemporâneo esteve pautada na defesa dos índios e populações marginalizadas do Mato Grosso. Seu espírito controverso não condenava apenas as injustiças geradas pela lógica do sistema vigente, mas alertava ainda sobre o modelo de centralização de poder existente na Igreja Católica. Sua concepção de Igreja progressista fez que com que em 1971, ao receber o título de bispo, rejeitasse o solidéu sacerdotal (acessório usado por todos os bispos) e adotasse um simples chapéu de palha em homenagem aos costumes da população na região do Araguaia e ainda como símbolo de identificação com as causas populares. Em sua busca pela simplicidade e contestação de poderes Casaldáliga rejeitou o anel episcopal adotando o anel de tucum (feito da semente de tucum, palmeira da região Amazônica), acessório que representa o engajamento social e a luta pela libertação popular e pela cidadania.

Foi exatamente no ano em que recebeu o título de bispo que Casaldáliga escreveu sua carta pastoral intitulada: Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. No documento é relatado o contexto social e político de São Félix do Araguaia, os grupos existentes na região e os dilemas enfrentados cotidianamente. Casaldáliga mostrava-se extremamente atento e sensível a todo tipo de opressão e extirpação de direitos. Em um dos trechos do documento ele denuncia a realidade das mulheres na região:

“A situação da mulher, em geral, é humilhante. Ela nem decide, nem se apresenta, nem pode reclamar. O homem não é gentil com ela. Falta ternura.”

Em 1981, Pedro Casaldáliga compôs a “Missa dos Quilombos” em parceria com Pedro Tierra. Milton Nascimento musicou as letras e a celebração representou uma denúncia contra a escravidão e opressão dos povos quilombola.

Ao completar setenta e cinco anos, em 2003, Pedro Casaldáliga formalizou seu pedido de renúncia ao papa João Paulo II, conforme a norma do Vaticano, mas apenas no ano de 2005 seu pedido foi aceito. Leonardo Ulrich Steiner foi nomeado para a Prelazia (território da Igreja Católica voltado para atender a necessidades específicas de uma região). Na ocasião, houve uma certa polêmica em relação a permanência ou não de Pedro Casaldáliga na Prelazia de São Félix, fato que o fez questionar o modo como os bispos são eleitos na Igreja Católica.

Mesmo após a renúncia, Pedro Casaldáliga viveu em uma casa humilde com uma capela aberta ao povo. A ele chegavam todos e todas, crianças, mulheres, indígenas, campesinos. Seu abraço e suas palavras de ânimo e conforto eram esperados por aquela população cujos direitos tinham que ser conquistados cotidianamente.

Pedro Casaldáliga sofria de mal de Parkinson e tinha suas atividades pastorais reduzidas em função da saúde e da idade. O lema que orientou sua ação pastoral e sua vida no Araguaia foi: “Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar”. Em tempos de ocaso da vida e banalização de direitos, sua morte, apesar dos 92 anos vividos plenamente, chega em péssima hora e expressa perdas reais e simbólicas para a Igreja Católica e para o país.

*Silvia Fernandes é Doutora em Ciências Sociais, professora da UFRRJ e especialista em estudos do catolicismo brasileiro.

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