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| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

A intensidade da pena importa? É uma pergunta à qual o progressismo costuma responder de maneira negativa no Brasil, com invejável segurança. Não raro, usa-se como exemplo a própria quantidade de presos no país, que já ultrapassa os 700 mil, numa sociedade com 60 mil homicídios anuais e criminalidade em franca ascensão desde 1980.

Diante de tal debacle do sistema de justiça, é normal que prosperem ideias como a de que “a polícia enxuga gelo”, “o problema é social” e até a crítica à prisão como algo que aumenta o crime, produzindo indivíduos revoltados e famílias desestruturadas.

O assunto é complexo e exige uma análise fina. É preciso ter em mente que a pena, nas sociedades modernas, tem pelo menos quatro funções, que produzem diferentes resultados, com níveis distintos de eficácia: retributiva, incapacitante, dissuasória e ressocializadora.

A pena é retributiva porque justiça é dar a cada um o que lhe é devido. Há perda de um lado e ganho do outro, por meio da fraude ou da força. A razão exige algum tipo de reparação ou ato que restaure o equilíbrio nas relações humanas. É um ditame da própria estrutura da realidade. O julgamento e a pena, na sua forma mais básica, têm função de aplacar essa demanda. Caso não existissem, prejuízos se seguiriam a atos violentos que resultariam em mais prejuízos e mais atos violentos. A justiça humana se funda na interrupção desse ciclo, transferindo para uma entidade impessoal a responsabilidade pela vingança.

Liberar um assassino muito cedo, ainda na flor da idade, é uma aposta perigosa

A pena também é incapacitante porque, no caso da prisão, execução ou de punições físicas extremas, como ainda acontece em países islâmicos, o ofensor é retirado de circulação temporária ou permanentemente.

Já o efeito dissuasório da pena se exerce de maneira geral ou específica. Geral, porque aumenta o medo da punição para ofensores potenciais; específica, na medida em que diz respeito ao comportamento futuro daquele que experimentou a punição.

Finalmente, a função ressocializadora, reabilitadora ou como se queira chamá-la tem a ver com o efeito que a pena pode provocar para mudar hábitos, concepções de mundo e o comportamento futuro dos delinquentes, pela ação de serviços psicossociais, educacionais ou treinamento laboral.

A ciência indica que a eficácia dessas quatro funções se dá, de trás para frente, de maneira crescente. Ainda que experiências recentes tenham salvado a ressocialização do debacle dos anos 1970, ainda se trata de campo com resultados irregulares, sujeito ao erro constante. É meramente possível, portanto, mas não consequência inevitável da punição.

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A função dissuasória, por sua vez, depende de outros fatores que não têm a ver só com intensidade. Em Deterrence in 21th Century, o criminólogo norte-americano Daniel S. Nagin afirma que, em termos de dissuasão, a presença ostensiva de um oficial da lei conta mais que a celeridade da apreensão e do julgamento – que, por sua vez, conta mais que a intensidade da pena. Conclusão óbvia, de certo modo, já que um ladrão dificilmente vai querer assaltar alguém na frente de um policial, e não vai ligar muito se a pena para assalto for execução sumária quando somente uma pessoa a cada 50 anos for presa, acusada e condenada por causa disso.

Interessante, porém, é a constatação de Nagin de que a intensidade só exerce efeito até certo ponto, por falhas inerentes à razão humana. Entre 25 ou 45 anos de prisão, a estimativa resta prejudicada para uma devida hierarquização de custos e riscos, já que ambos os resultados parecem muito ruins. Isso pode explicar, por exemplo, que a pena de morte não pareça exercer resultados eficazes.

É claro que um dos fatores que não entram na conta do pesquisador é a diferença entre sociedades. Execuções não costumam ser céleres nos Estados Unidos, por exemplo. Além disso, não se trata de punição pública, nem com violência explícita e chocante. Uma pesquisa mais séria teria de considerar a eficácia de sistemas penais de países islâmicos, por exemplo.

Ainda assim, a intensidade da punição tem, sim, sua importância. Caso contrário, bastaria elucidar rapidamente um homicídio e aplicar uma pequena multa para dissuadir futuros comportamentos. Na prática, não é assim. Nagin vai dizer que o que ocorre é uma relação marginal entre intensidade da pena e redução dos crimes. Ou seja, o crime desce enquanto a intensidade aumenta só até certo ponto, a partir do qual se mantém estável. Não há, porém, relação matemática precisa que aponte para uma fórmula universal.

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Finalmente, restam as duas outras funções. Primeiro, a incapacitação, de utilidade imediata, pelo menos quando a prisão é capaz de manter o delinquente encarcerado e sob controle. Delinquência tem a ver com autocontrole, ou capacidade de adiar gratificações, mas também com oportunidades. O primeiro pode aumentar com a maturidade; as segundas diminuem com o tempo. Portanto, liberar um assassino muito cedo, ainda na flor da idade, é uma aposta perigosa, porque é provável que ele mate de novo.

Por outro lado, existe a função retributiva. Esta é automática, mas sua eficácia também se relaciona com a intensidade. Afinal, a ausência de punição condizente ao dano causado pode estimular a vingança, assim como a proximidade temporal do fato. Assassinos que logo são libertados se tornam alvo fácil de familiares ou amigos revoltados da vítima. Grupos de extermínio e milícias se instituem muitas vezes para eliminar delinquentes reiteradamente soltos pela Justiça. Ou seja, quanto mais tempo o sujeito passar afastado, muitas vezes, mais difícil é que se deseje eliminá-lo permanentemente, de modo que uma pena extensa pode ser também uma proteção para o próprio delinquente contra a vingança cruenta.

A intensidade da pena importa para a redução de crimes e para a legitimidade mesma do sistema de justiça criminal. Isso tem de ser levado em conta na hora da reforma necessária da nossa legislação penal. Mais conhecimento e menos proselitismo ideológico são essenciais para a restauração da autoridade do Estado brasileiro.

Eduardo Matos de Alencar é escritor e sociólogo, doutor em Sociologia e editor do site Proveitos Desonestos.
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