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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Iniciando sua semana de trabalho, você se dirige a um restaurante no horário do almoço e – após examinar o cardápio e pedir um filé à parmegiana – descobre que o estabelecimento está proibido de vender carne aos seus clientes nas segundas-feiras, em função de uma lei municipal. À noite, reunindo-se com seus amigos num bar, entre petiscos e animadas conversas, um homem se aproxima de sua mesa e pergunta se o frasco de sal que você está usando para temperar sua porção de batatas fritas já se encontrava na mesa ou se você teve de solicitá-lo ao garçom. Tão logo você responde, o homem – identificando-se como fiscal do governo – impõe pesada multa ao estabelecimento, pois uma lei estadual vedava que os saleiros ficassem na mesa à disposição dos clientes.

Exemplos hipotéticos? Infelizmente, não. As duas leis foram recentemente aprovadas no Brasil com o intuito de proteger a saúde dos consumidores, evitando que sejam expostos aos propalados malefícios da carne e do sódio. Pergunta inevitável: cabe ao Estado controlar os hábitos alimentares dos indivíduos ou eles devem ser livres para escolher os alimentos que desejam ingerir, arcando com as consequências de suas escolhas?

Do Estado como garantidor da ordem social, passamos para o Estado engenheiro da sociedade

O Estado moderno, com o agigantamento de seus meios de ação e de controle, vai estendendo suas garras burocráticas sobre todos os aspectos da vida humana, minando a liberdade individual. Do Estado como garantidor da ordem social, passamos para o Estado engenheiro da sociedade. Tocqueville, na sua célebre obra Da Democracia na América, há quase dois séculos, denunciou os riscos de o poder estatal se espraiar por todas as esferas da vida, reduzindo os seres humanos a mero papel de animais domesticados:

“Acima desses se ergue um poder imenso e tutelar, que se encarrega sozinho de assegurar o proveito e zelar pela sorte deles. É absoluto, detalhado, regular, previdente e doce. Ele se pareceria com o poder paterno se, como este, tivesse por objeto preparar os homens para a idade viril; mas, ao contrário, procura tão-somente fixá-los de maneira irreversível na infância; ele gosta que os cidadãos se regozijem, contanto que não pensem em outra coisa que regozijar-se. Trabalha de bom grado para a felicidade deles; mas quer ser o único agente e o único árbitro dela; provê a segurança deles, prevê e garante suas necessidades, facilita seus prazeres, conduz seus principais negócios, dirige sua indústria, regra suas sucessões, divide suas heranças; por que não lhes pode tirar inteiramente o incômodo de pensar e a dificuldade de viver? [...]

Comida também é cultura: Alimentação adequada e o papel do Estado (artigo de Silvana Maria dos Santos, nutricionista, especialista em Saúde Coletiva)

Depois de ter colhido assim em suas mãos poderosas cada indivíduo e de o ter moldado a seu gosto, o soberano estende seus braços sobre toda a sociedade; cobre a superfície desta com uma rede de pequenas regras complicadas, minuciosas e uniformes; [...] não tiraniza, incomoda, oprime, desvigora, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos e industriosos, de que o governo é o pastor.”

A perdurarem as tendências ao controle tirânico da sociedade, chegará o dia em que comer uma picanha temperada com sal grosso num churrasco de família será considerado um ato de desobediência civil, afirmando-se pela boca, mas sem palavras, o primado da liberdade.

Frederico Gonçalves Junkert é advogado (USP) e especialista em Direito Constitucional.
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